A ambição globalista da Nato

Manuel Raposo — 18 Maio 2022

Finlândia, Suécia. Mais dois peões para a política de sempre: o domínio dos EUA na Europa e no mundo

O previsto alargamento da Nato à Finlândia e à Suécia está a ser aclamado como uma prova do reforço e da coesão do bloco Ocidental e como uma demonstração da derrota dos planos “de Putin”, isto é, da Federação Russa. Soma-se isto aos clamores diários que anunciam uma vitória militar dos ucranianos e que pressagiam um descalabro económico da Rússia e até o possível derrube do regime russo. Esta visão ocidental da situação peca, não só por um optimismo postiço, próprio da propaganda de guerra (como é evidente acerca do desenrolar das operações militares), mas também pela miopia que atinge norte-americanos e europeus quando se trata de ver os acontecimentos para lá da espuma dos dias ou dos ganhos imediatos. 

A ficção da simples defesa

A Nato nasceu, contra o que afirmam os seus promotores, como uma aliança militar agressiva. O seu propósito inicial, como se sabe, foi a contenção da influência política da URSS na sequência da segunda guerra mundial. Defensiva foi a criação do Pacto de Varsóvia, seis anos depois, para responder ao rearmamento da Alemanha promovido pelos EUA e pela renascente Europa Ocidental.

A dissolução do Pacto de Varsóvia, como toda a gente percebe, retirou qualquer razão que restasse à Nato para continuar a existir a pretexto de conter a influência soviética. A sua continuação e a extensão aos países do leste europeu (mais as tentativas falhadas de agregar a Ucrânia e a Geórgia) dão prova do seu carácter agressivo. A Nato tornou-se o principal instrumento do imperialismo norte-americano para garantir a sua hegemonia na Europa e no mundo.

Importa lembrar, para desfazer a ideia peregrina de uma aliança militar defensiva, as agressões e intervenções da Nato desde que os EUA se sentiram sem competidor à altura, a partir de 1991, a começar na Jugoslávia e a findar no Afeganistão. Lembremos ainda os propósitos de replicar o modelo e de alargar o raio de acção da Aliança à África, ao Atlântico Sul e à própria Ásia. Tudo isto — agressões, intervenções “humanitárias”, alargamento — em zonas do globo em que os EUA acham ter interesses a “defender”.

Nenhum laivo de democracia

As forças, a orientação política, as decisões da Nato não são mais do que as forças, a política e as decisões dos EUA. Não existe nenhuma democracia interna à Nato que permita aos seus membros decidir livremente o que lhes interessa se for contra o que convém aos EUA. 

O comando militar efectivo está, sem partilha, em mãos de generais norte-americanos. As cimeiras da Nato são uma farsa de democracia para dar legitimidade às decisões vindas de Washington. Os secretários-gerais da Nato são meros fantoches dirigidos a partir do Pentágono, como o néscio Stoltenberg evidencia de forma acabada. 

Os europeus pagam a sua “protecção” como um lojista desprotegido paga a um gangue mafioso para ter a segurança que ele decide dar-lhe.

A integração da Finlândia e da Suécia representa apenas o ganho de mais dois peões para que seja prosseguida a mesma política de sempre, ou seja, assegurar aos EUA o seu domínio sobre a Europa e no xadrez mundial. No momento presente, melhor será dizer: assegurar aos EUA um amparo na queda, tendo em vista o declínio inexorável do seu poder sobre o mundo. E este aspecto tem a maior importância para avaliar os acontecimentos: a perda de capacidade económica e política reforça o pendor agressivo do imperialismo norte-americano, por ser no campo militar que a sua superioridade ainda poderá dar-lhe trunfos.

Uma Europa submetida e submissa

Para além de não beneficiarem de nenhuma igualdade de tratamento face aos EUA e de pagarem milhões de euros para o orçamento da Nato, os europeus pagam evidentemente outro tributo: a submissão política e a falta de independência. Os esboços tímidos da França e da Alemanha em procurarem uma chamada “independência estratégica” (face aos EUA, claro) nunca passaram de suspiros que estão a ser abafados pela contra-ofensiva norte-americana em resposta à guerra na Ucrânia. 

Mas apresentar isto como uma derrota da Rússia — como até certa esquerda argumenta para provar o que considera ser o “erro estratégico de Putin” ao desencadear a guerra — é colocar as coisas de pernas para o ar. Ao contrário, é a longa submissão (pode dizer-se histórica) dos europeus ao imperialismo ianque que lhes cortou as pernas, não só em todo o pós-guerra, mas também no pós-guerra fria e ainda diante da iminência da guerra na Ucrânia. Foi isto que fez da UE um sub-imperialismo subordinado aos interesses maiores dos EUA.

Uma lógica de confronto permanente

Foram na realidade Biden e consortes (na sequência de uma tarefa iniciada por Obama em 2014) que tudo fizeram para exacerbar o conflito com a Rússia em solo ucraniano, sem que a UE tivesse a coragem de levantar a voz para travar o extremismo norte-americano e procurar atender às reclamações da Rússia. O facto de nenhum Chirac e nenhum Schröder terem sequer procurado marcar distâncias, como sucedeu em 2003 ante a iminência do ataque ao Iraque, é elucidativo sobre o grau de dependência da UE diante da política anti-russa de Washington.

Fala-se de defender a Suécia e a Finlândia. Mas, nem um nem outro destes países foram ameaçados pela Rússia, a qual, por seu lado, teria todo o interesse em que eles continuassem neutros, como adiante se verá. Na lógica de confronto criada por acção dos EUA, sim, a integração dos dois países na Nato é que os vai colocar na linha da frente de um futuro eventual conflito, tal como aconteceu com a Ucrânia. 

A segurança da Europa, que a Nato jura defender, fica assim, pelo contrário, abalada uma vez mais por voltar a alterar o balanço de forças entre a Nato e a Rússia. Os EUA criam deste modo uma nova fonte de pressão sobre a Rússia, e ainda mais se decidirem colocar armas nucleares na Finlândia, que partilha uma fronteira de 1300 km com a Rússia.

Preparando o terreno desde 2016

Numa visita à Finlândia feita em Julho de 2016, Vladimir Putin conferenciou com o presidente finlandês sobre os riscos do país entrar para a Nato, questão que já então estava sobre a mesa, e acerca do desequilíbrio que isso voltaria a introduzir na Europa. 

Estava-se na altura ainda longe da actual guerra, mas aumentavam as provocações dos EUA à Rússia exercidas através do regime ucraniano sobre as populações do Donbass. Ao mesmo tempo, os norte-americanos faziam pressões sobre os dois países nórdicos para integrarem a Nato com o objectivo de expandir a sua presença no Mar Báltico e no Árctico, duas outras fronteiras naturais da Rússia.

Numa campanha eleitoral finlandesa em abril de 2019, o debate sobre a entrada na Nato foi lançado com o intuito de testar (e se possível vencer) as resistências da população. Políticos e comentadores apresentavam então essa opção como um “seguro contra incêndio”, e o presidente Sauli Niistro (o mesmo que hoje está em funções) apadrinhava a ideia como um “reforço de segurança” para a Finlândia. 

Na mesma altura, e em consonância, estrategas norte-americanos colocavam a possibilidade de estender os efeitos do artigo 5.º do tratado da Nato (de defesa mútua) a “parceiros próximos”, como a Suécia e a Finlândia, mesmo sem pertencerem formalmente à Aliança. Esta manobra pretendia tornear as dificuldades levantadas por uma opinião pública adversa. As intenções só não passaram à prática porque na altura faltava o apoio “da população, do parlamento e da orientação de política externa”, como reconheceu o líder de um partido finlandês. (Global Times, 6 abril 2019)

De então para cá, desenrolou-se o trabalho de convencer as opiniões públicas sob o martelo da “ameaça russa”, a fim de apresentar como sendo vontade dos povos aquilo que na origem é puro interesse geoestratégico dos norte-americanos e das classes dominantes europeias que os servem.

Com a Nato, nunca haverá segurança

Contra aqueles — políticos, comentadores, propagandistas — que começam a contar a história recente a partir de 24 de fevereiro deste ano, é preciso lembrar que os EUA fizeram da Europa o palco principal do seu confronto com a URSS e depois com a Rússia, desde há 70 anos. É do exclusivo interesse dos EUA manter as ameaças de guerra sempre activas a fim de colocar a Rússia sob permanente pressão, e adicionalmente subjugar os aliados. A guerra na Ucrânia é o mais recente episódio desta política de confronto.

A colaboração das potências europeias nesta manobra que leva décadas coloca os povos europeus ao arrasto dos desígnios norte-americanos. No caso presente, tal submissão pode medir-se já no dia-a-dia das populações pelo aumento das despesas militares, pelo agravamento do custo de vida e pela ameaça de escassez de bens de consumo — tudo resultado em grande parte das sanções impostas à Rússia.

A segurança na Europa — que enche a boca dos dirigentes norte-americanos e europeus, mas não os impediu de promoverem as agressões que quiseram sempre que isso lhes interessou, a começar com a destruição da Jugoslávia — não pode ser conseguida enquanto for a Nato a determinar os destinos dos povos do continente. 

A estabilidade e a paz na Europa serão sempre precárias enquanto prevalecer a disputa de interesses das forças capitalistas-imperialistas que nela de debatem. É o que nos mostra a história dos últimos 70 anos, para não ir mais longe. Mas mesmo essas estabilidade e paz relativas não poderão ser alcançadas sem a Rússia, e ainda menos contra a Rússia — evidência que o chanceler alemão Scholz chegou a admitir num raro momento de lucidez, logo esquecido em nome da “unidade” com os EUA.

A entrega dos dirigentes políticos, sem excepção, e da esmagadora maioria das forças políticas da UE nos braços dos EUA, deixa os povos da Europa desamparados. Mas  também faz deles a única origem possível de resistência à política de guerra. Será essa a base segura para levantar um movimento de contestação do imperialismo, e da Nato como seu braço armado.


Comentários dos leitores

MANUEL BAPTISTA 18/5/2022, 18:46

A tua análise é certeira, realista e adequada. Porém, estamos a viver momentos de grande desorientação, tanto na esquerda, no sentido lato, como no povo, em geral.
Não encontro paralelo na história, de uma histeria coletiva reforçada, em vez de contrariada, por muitos dos que tradicionalmente se posicionavam contra os poderes do capital, da guerra e do militarismo.
Se isto não é um fascismo global, o que será então? Os nomes pouco importam, mas a análise do fenómeno tem de ser feita em profundidade. A nossa sobrevivência (enquanto espécie) depende disso!

Francisco Tavares 23/5/2022, 15:13

Muito bom artigo. Independentemente da opinião que se possa ter sobre o regime russo e Putin (e haveria muito a dizer, desde logo as suas fundações que são efetivamente democráticas ....), há que combater a histeria e manipulação instaladas nos media ocidentais. Isso de anjos e diabos está bom para os fascistas... os do "quem não é por nós é contra nós". Tivemos isso de sobra entre nós até ao 25 de Abril. A situação mostra também que não deve ser subestimada a capacidade de domínio e manipulação que os EUA têm. Os seus líderes e classes dominantes não hesitam em utilizar os outros (sejam eles quem forem...) como carne para canhão. A história dos EUA está cheia de exemplos. A Ucrânia éapenas o mais recente.

NATO’s Globalist Ambition Finland, Sweden: Two More Pawns for U.S. Dominance, by Manuel Raposo – Dandelion Salad 24/5/2022, 16:34

[…] The author is editor of the Portuguese web magazine MUDAR DE VIDA, where the article was published May 18. […]


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar