O que vale a “unidade” do Ocidente imperialista?

Editor / James Smith — 22 Março 2022

A verde, países que aplicam sanções à Rússia desde 2014. O panorama pouco mudou em 2022.

O Ocidente europeu e norte-americano, mais os seus amigos australianos e japoneses, invocam a cada passo a “unidade” conseguida entre eles em resposta à guerra na Ucrânia para demonstrarem o “isolamento” da Rússia e até da China. A realidade é um pouco diferente se olharmos para o conjunto do mundo. Por exemplo, mais de cem países recusam seguir as imposições dos EUA e da Europa acerca das sanções à Rússia. Entre eles contam-se não só a China e o Irão, mas também a Índia, a África do Sul, o Brasil ou o Egipto, e muitos outros da América Latina, da Ásia e da África. Que efeito terá, a prazo, esta dissidência em relação aos ditames norte-americanos e europeus, sabendo que aqueles países representam a larga maioria da população mundial?

Os males económicos causados à Rússia são evidentes, mas os efeitos sobre as economias de praticamente todo o mundo são igualmente negativos, incluindo a própria Europa. Coloca-se assim a questão de saber por quanto tempo poderão estes países suportar o ricochete das sanções, que são essencialmente uma arma norte-americana. 

Para fugir quanto possível à ditadura do dólar (factor em que se baseia a política de sanções dos EUA) vários países encaram medidas de efeito imediato para “desdolarizar” as transacções comerciais, fazendo uso das suas próprias moedas, ou outras, para trocas bilaterais. Mesmo não sendo isto o fim do dólar como moeda dominante, o sinal está dado para que a maioria do mundo, sobretudo o chamado Sul global, encare a necessidade de se libertar da tirania financeira do imperialismo.

E isto leva-nos a outra questão: a de saber que efeitos políticos a prazo terá esta reacção sobre a hegemonia do Ocidente imperialista. A “unidade” que o Ocidente se gaba de ter conseguido, entre si, em face da guerra e para o efeito de sancionar a Rússia, tem como contraponto um afastamento progressivo de boa parte do mundo, não só em relação ao uso da chantagem económica como arma de guerra, mas também em relação à tentativa de isolar politicamente a Rússia e a China.

O texto que reproduzimos mostra como a hipocrisia e a duplicidade do Ocidente no respeitante à justiça e ao direito nas relações internacionais conduz o resto do mundo a rejeitar cada vez mais a arrogância das potências imperialistas e a tentar escapar ao seu domínio.

 

CRISE NA UCRÂNIA MOSTRA DOIS PESOS DE JUSTIÇA INTERNACIONAL

James Smith, Global Times

Desde o início do conflito na Ucrânia, o público ocidental reagiu quase unanimemente com indignação. A Rússia de Putin foi apontada como moralmente má, enquanto os líderes políticos lhe aplicavam duras sanções, levando a um êxodo de empresas ocidentais. O Ocidente também se envolveu em censura em larga escala contra fontes de notícias e meios de comunicação sociais russos, marcando-os como “propaganda”. Ao mesmo tempo, abriu um processo contra Moscovo no Tribunal Penal Internacional. Tudo isso foi enquadrado na narrativa ocidental tradicional, de longa data, própria de um grupo excepcionalista de nações “justas” que encarnam uma luta global do bem contra o mal, ou da democracia contra o autoritarismo.

Sem sinal de remorso

À medida que o sentimento ocidental se enfurece contra a Rússia, parece haver uma amnésia colectiva acerca da realidade das próprias acções e do legado do Ocidente em todo o mundo, tanto no passado como no presente, sem sinal de remorso em relação aos países que os EUA e seus aliados destruíram desenfreadamente, só falando das últimas duas décadas. 

A Ucrânia é vista como uma tragédia, um estado de coisas horrível sobre o qual justiça deve ser feita. Mas o legado do Ocidente no Afeganistão, no Iraque, na Síria e no conflito em curso no Iémen é recebido com uma indiferença colectiva, um encolher de ombros e a conclusão de que em tais países esses eventos são “normais”. Na longa história de colonialismo brutal no Sul global, o Ocidente não se desculpa, e acredita mesmo que fez um “favor” a esses países. A política externa ocidental vive numa falsa consciência de larga escala.

Monopólio da verdade e da civilização

Mas é o legado desse imperialismo, em oposição aos valores apregoados, que permitiu ao mundo ocidental (e especialmente aos países de língua inglesa) viver com privilégios extremos, mantendo por muito tempo uma supremacia cultural, económica e militar sobre o globo. Esse privilégio acrescentou ao seu orgulho próprio a ideia de que a sua posição foi conquistada por meio de uma dedicação piedosa à sua supremacia moral, em oposição à realidade material do imperialismo, marcada por dominação e conquista. 

Por acção das suas classes dominantes, o público ocidental foi ensinado a acreditar piamente no seu próprio mito de excepcionalismo através da democracia liberal. E, com essa ideologia, foi levado a acreditar no seu direito de evangelizar os outros como estratagema para a dominação. E ainda a considerar que possui o monopólio sobre o que constitui a verdade e a civilização, aceitando acriticamente a demonização, por junto, dos designados inimigos como as verdadeiras ameaças à paz global.

Em nome da democracia e dos direitos humanos

Esse senso distorcido de si próprio cria uma concepção de “justiça” no mundo com dois pesos, tanto pelo poder quanto pelo status. Na visão dos media e das classes políticas ocidentais, é perfeitamente aceitável destruir um país em nome da democracia e dos direitos humanos, matando milhões de civis e causando sofrimentos inimagináveis, sem quaisquer consequências. 

Quando o Reino Unido e os EUA invadiram o Iraque em 2003 sob o falso pretexto de “armas de destruição em massa”, a condenação global foi silenciada, a grande comunicação social não a denunciou, os perpetradores não enfrentaram formalmente acusações de crimes de guerra e as vítimas não tiveram voz ou qualquer tipo de solidariedade ou apoio global. 

Em agosto passado, um ataque de drone dos EUA matou várias crianças em Cabul, no Afeganistão. O mundo novamente nem pestanejou. É como se a vida dessas pessoas simplesmente não importasse ou não tivesse um valor igual à dos que vivem na Europa. A hegemonia ocidental e o privilégio ocidental são a razão por que nem o Reino Unido nem os EUA foram proclamados “estados párias”.

Ferramentas para manter hegemonia

No entanto, mesmo agora, o Reino Unido e os EUA estão a apoiar uma guerra brutal no Iémen, que tem envolvido o bombardeio indiscriminado de civis. O bloqueio a que o país está sujeito induziu fome, doenças e crises humanitárias. Onde está a descarga de emoção, tristeza e raiva que se vê manifestar pela Ucrânia? Não há, e tal situação demonstra que o Ocidente apenas utiliza a sua ideologia, os seus valores e o chamado “iluminismo” como meras ferramentas para manter a sua hegemonia e, portanto, criar um mundo estruturalmente desigual e injusto. 

Antes da guerra da Ucrânia, o ódio também foi espicaçado contra a China. Mas o público ocidental parece não ter capacidade de reconhecer quando está a ser enganado e manipulado, porque o mito do “excepcionalismo ocidental” — em contraste com a distorção de um Leste atrasado, incivilizado e cruel — foi aceite como normal.

Cerco emocional

Enquanto a guerra na Ucrânia continuar, o público ocidental será continuamente submetido a um cerco de argumentos emocionais e de incitamento. Com certeza, a guerra é uma coisa terrível, mas o julgamento e a consciência da maioria das pessoas são controlados por uma mera questão: “Quem está a fazer a guerra? E quem são as vítimas?” 

É, por isso, hipocrisia do mais alto grau acusar a Rússia por crimes de guerra quando está em curso uma carnificina conduzida pela Grã-Bretanha e pelos EUA. Esta dualidade permite perceber por que razão o Sul global vai ficando cada vez mais desenganhado com a arrogância do Ocidente.

(Tradução e subtítulos: Mudar de Vida)


Comentários dos leitores

O que vale a “unidade” do Ocidente imperialista? 23/3/2022, 14:58

[…] Fonte aqui […]

Leonel Lopes Clérigo 23/3/2022, 15:17

"CRIA FAMA E DEITA-TE A DORMIR..."

1 - Os USA vêm procurando conservar desde o tempo da sua LUTA PELA INDEPENDÊNCIA, uma imagem de Paraíso na TERRA da Democracia Burguesa, um defensor do que de melhor a Humanidade tem.
Contudo, sendo um Estado que se esforça pela aparência externa DEMOCRÁTICA, na prática, tal como todos os outros grandes ESTADOS BURGUESES, sua acção PLANETÁRIA de ESTADO "todo poderoso" guia-se no sentido de garantir os interesses da minoria de suas Classes Dominantes em desfavor dos INTERESSES de toda a POPULAÇÃO MUNDIAL. Daí o dizer-se e até com alguma "ironia", que toda a população da TERRA deveria "ter voto" nas eleições Estadunidenses. 

2 - Na ORIGEM da Fundação dos USA, está um grupo de "proprietários de terras" que se opuseram justamente à "rapina" da extração do "EXCEDENTE" pela potência colonizadora INGLESA - coisa que também aconteceu com o BRASIL e o resto do nosso IMPÉRIO COLONIAL.
Mas - o mundo é ingrato... - rapidamente os USA assumiram a ACÇÃO CONTRÁRIA ao belo ideário da sua REVOLUÇÃO. Precisa e curiosamente, praticam hoje pelo mundo inteiro o que lhes fizeram os COLONIALISTAS INGLESES: manter o MUNDO a "ferro e fogo", bloqueando o desenvolvimento dos POVOS para melhor lhes extrair, em seu favor, os múltiplos recursos. Aprenderam bem do "conselho" de Cecil Rhodes.

3 - Deste modo, a imagem difundida pelos USA de ANTI-COLONIALISMO é "peta": os USA são hoje um grande ESTADO COLONIZADOR. Melhor: o MAIOR.
As 2 Guerras MUNDIAIS - é a HISTÓRIA a faltar-nos, sempre a HISTÓRIA aldrabada... - deram-lhe a oportunidade de "arrecadar" o IMPÉRIO BRITÂNICO e, de seguida, vieram atrás todos os outros (veio-me agora à memória o "Relatório sobre a situação Internacional" de A. Jdanov - Edições Maria da Fonte).
E na posse deste enorme poder, tornaram-se a grande potência MUNDIAL, o "polícia do Mundo", uma cópia da "mão-forte" dos velhos IMPÉRIOS para assegurar a "paz necessária" ao "fluir da Economia" e do BEM-ESTAR (?).

4 - Por mim - mísero terráqueo... - louvo as BELAS intenções dos "LIBERTADORES" desinteressados do UNIVERSO. Mas dispenso as "boas acções" de policiamento "DEMOCRÁTICO".

Nota Final: este comentário surgiu da leitura dum texto de JAMES SMITH "A verdadeira côr dos US: um estado colonizador genocida colonial e expansionista", o autor do texto acima.
https://www.globaltimes.cn/page/202108/1231254.shtml

mraposo 23/3/2022, 20:32

Resposta a Estátua de Sal
Agradecemos o vosso interesse e a divulgação. Nos tempos que correm, toda a colaboração é pouca.
Saudações cordiais

CarlosM 7/4/2022, 21:49

As três tendências que me parecem mais importantes no mundo atual são: (1) o progressivo declínio da superpotência americana, que pode vir a acelerar-se se o dólar e o euro (que correspondem a 80% dos pagamentos do comércio mundial) começarem a ser desafiados por moedas alternativas; (2) a progressiva ascensão da R.P. China a um estatuto de superpotência capaz de ombrear com os EUA (e muito provavelmente, ultrapassá-los na 2ª metade do século); (3) a compreensão pela Federação Russa de que a primeira tendência é irreversível e a sua procura em reposicionar-se geopoliticamente beneficiando da segunda.
Este é um novo desenvolvimento no mundo tripolar que começou a desenhar-se nos anos 70, e que os estudiosos da Guerra Fria muito tempo pretenderam encaixar no quadro de um conflito bipolar. De facto, a URSS compreendeu no início dos anos 60 que precisava de entrar num compromisso com os EUA (as duas grandes potências nucleares da altura). Daí a sua política de “coexistência pacífica”, que foi um dos fatores a impulsionar a cisão sino-soviética (e a expansão do movimento marxista-leninista-maoísta por todo o mundo). No início dos anos 70, a R.P. China percebeu, por sua vez, que não podia enfrentar dois inimigos ao mesmo tempo (os EUA e a URSS). Daí que tenha gradualmente substituído a revolução mundial pela Realpolitik. Nixon visita a China, e os maoístas de todo o mundo são incentivados a fazer do “social-imperialismo” soviético o inimigo principal. A partir daqui o mundo tripolar ficou criado – curiosamente, sempre com os EUA como uma peça chave.
Ora, na atualidade, desenha-se uma aproximação entre os antigos rivais asiáticos (que já vinha da Belt and Road Iniciative) com a possível "despromoção” dos EUA e do mundo ocidental no médio prazo.
Quanto ao “Sul global”, trata-se de um conjunto muito diversificado de países, com contradições entre si, mas também a capacidade de se entender em alguns domínios. A análise da votação de Março na A.G. da ONU mostra que, em África, os antigos laços com o mundo socialista, que apoiou as independências nacionais, pesaram muitas vezes na abstenção. Mas é verdade também que Brasil, Índia, Indonésia ou África do Sul estão à espera, há várias décadas, de conquistar um lugar permanente na desatualizada configuração do Conselho de Segurança da ONU, e a abstenção é a posição tática mais aconselhável. Este “Sul global”, na sua diversidade, aprendeu há muito a jogar com as três tendências existentes, mas visivelmente serão os países mais fragilizados de África e Ásia os que mais irão sofrer com as sanções do Ocidente à Federação Russa.

Leonel Lopes Clérigo 9/4/2022, 17:07

Falta minha: só agora me dei conta do comentário de CARLOS M (CM). Este comentário é uma boa pedrada no CHARCO. Por isso e dado as importantes questões que levanta, pouco usuais entre nós, considero negativo deixá-lo sem um comentário de resposta. Vamos a isso.

1 - CM parte do que designa das "três tendências" que se perfilam no Mundo de Hoje.

1.1 - o progressivo declínio da superpotência americana (penso que melhor seria dizer do IMPERIALISMO USA dado que, na prática, este País assim se assumiu desde o fim da 2ª Guerra Mundial: o guardião do mundo.
1.2 -a progressiva ascensão da R.P. China a um estatuto de superpotência capaz de ombrear com os EUA (ou substitui-lo: dois galos na capoeira, não...)
1.3 - a procura da Federação Russa em reposicionar-se geopoliticamente face à aceitação do declínio da superpotência americana.

2 - Posso estar a interpretar mal mas julgo que estas 3 TENDÊNCIAS referidas por CM têm um pressuposto: na "Lógica de desenvolvimento", manter-se-á a PERMANÊNCIA IMPERIAL ou seja, face ao DECLÍNIO dos USA parece - estarei a supor mal?...- que haverá apenas uma substituição de DONO do MUNDO: o Império USA dará a vez ao IMPÉRIO da CHINA. E a ser assim, significa isto que o CAPITALISMO irá continuar de "BOA SAÚDE": só muda o CEO.
Em minha fraca opinião, nada há - aparte os "DESEJOS" dos que querem que tudo permaneça igual ao que sempre foi ou seja, à EXPLORAÇÃO do TRABALHO - que nos possa levar a afirmar que a LÓGICA da CHINA é a de substituir o actual IMPÉRIO USA por um SEU. Se assim for, não lhe gabo o gosto: ficar com a "batata quente" nas mãos e cada vez mais quente. Sobretudo uma CHINA mais de "rotas da seda"...

Mas parece não ser isso o que se pode dizer da sua PRÁTICA INTERNA de PAÍS. O seu DESENVOLVIMENTO tem ido na direcção de anular DESIGUALDADES INTERNAS. Os ganhos de PRODUÇÃO que tem obtido vão no sentido de elevar o BEM-ESTAR da população Chinesa. E isto à sua custa.
Já nos USA, as DESIGUALDADES SOCIAIS são mato, e a EXPLORAÇÃO desenfreada do TRABALHO só tem sido atenuada por beneficiar da EXPLORAÇÃO MUNDIAL, ao afluirem ao País Capitais de TODO o MUNDO e o Dólar funcionar como MOEDA UNIVERSAL. Para já não falar do bloqueio que tem feito ao DESENVOLVIMENTO dos POVOS de que a América Latina é exemplo acabado.

3 - Além disso, quando se afirma que a CHINA substituiu a "Revolução mundial" pela "Realpolitik" - o que faz pressupor o "abandono de velhos objectivos" - há que voltar a olhar tudo isso à "distância". E dar mais atenção ao que LENINE designava de "ANÁLISE CONCRETA da SITUAÇÃO CONCRETA" ou seja, olhar as coisas não só por fora mas, também por dentro. Por mim, fiquei "surpreendido" quando tomei - mais recentemente - algum conhecimento sobre os debates "quentes" acerca da TRANSIÇÃO no início da REVOLUÇÃO de 17 e das suas DIFICULDADES e OPÇÕES sobre o FUTURO sempre DESCONHECIDO. E, curiosamente, vi também surgir as MESMAS QUESTÕES - e dificuldades sérias - logo no INÍCIO da REVOLUÇÃO CUBANA e nos debates que seguiram sobre a mesma TRANSIÇÃO.
Quanto à CHINA, ficaria agradecido que me explicassem porque Deng Xiaoping é hoje tido em "consideração" e não já o "revisionista". De facto, a TRANSIÇÃO não está descrita nos livros sagrados. Nem poderia estar. A cada um o seu trajecto...

4 - Mas quem tenha DADOS, que os "ponha sobre a mesa". Esclarecer os cérebros, é boa prática.


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