Ucrânia empurrada para a frente de batalha
Manuel Raposo — 4 Março 2022
No ataque da Rússia à Ucrânia, os EUA e a UE têm ocasião de ver, em espelho, as suas próprias acções das últimas décadas. O mesmo vale para as autoridades portuguesas e para cada um dos governos europeus, que nunca levantaram qualquer objecção às intervenções militares, às sanções e às ameaças de todo o tipo, com origem nos EUA ou na própria UE, contra países como a Jugoslávia, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria, a Venezuela, o Irão, ou Cuba — todos eles tão soberanos como a Ucrânia.
No ponto a que os acontecimentos chegaram, pouco importam as apreciações morais que justifiquem a agressão russa ou a condenem; importa sim perceber os motivos que conduziram a tal desenlace e porque não foi evitado. Se isto for ignorado, a opinião pública nacional e mundial será arregimentada por uma barragem de propaganda irracional sem saber ao que vai.
Se fosse vontade do Ocidente evitar a guerra, as medidas estavam à vista: cumprir os acordos de Minsk de 2014-15, no que respeita às regiões do leste ucraniano, e declarar que a Ucrânia não integraria a NATO. Foi este caminho que EUA e UE recusaram.
O que verdadeiramente incomoda os dirigentes do Ocidente imperialista é o facto de, desta vez, ser a Rússia a violar o direito internacional em nome dos seus interesses estratégicos. Direito esse que EUA e UE espezinharam à vontade — sem sofrerem qualquer sanção — desde que o fim da guerra-fria lhes deu uma supremacia incontestada sobre o mundo.
Em trinta anos de rédea solta, o Ocidente invocou a bel-prazer, e com todo o arbítrio, o direito de se “defender preventivamente” de alegadas ameaças à sua segurança, fosse isso o que fosse. Que não se tratava de defesa, prova-o a doutrina militar dos EUA, adoptada desde o mandato de George W. Bush, de fazer uso do seu arsenal nuclear não como mero meio de resposta ou dissuasão, mas como instrumento de primeiro ataque.
Invocando a “superioridade moral” das suas democracias, o Ocidente impôs guerras, expandiu as suas alianças militares, promoveu mudanças de regimes políticos, organizou “revoluções coloridas” e golpes de estado, assassinou dirigentes, cercou os seus principais competidores com bases militares e esquadras navais, ameaçou o mundo com a guerra espacial. Não foi o direito que o guiou: foi a força incontestada de que dispôs durante vários anos. É essa supremacia que agora está em causa.
Desde que os EUA se viram livres da URSS, as organizações internacionais que tinham nascido do relativo equilíbrio imposto pelo confronto Leste-Oeste — a começar pela ONU — foram desvalorizadas, torpedeadas e anuladas pela arrogância ianque, com a colaboração ou a passividade da UE. Em vez de regras aceites pela comunidade de países, a tríade imperialista EUA-UE-Japão impôs ao mundo a lei do mais forte, escudada no poderio militar norte-americano. E nos últimos anos fez tudo para substituir as normas, formalmente democráticas, contidas na Carta das Nações Unidas por “regras” e “valores” por si ditadas a que o resto de mundo teria de obedecer.
No caso da Ucrânia, portanto — considerando a lógica de confronto que o Ocidente pôs em campo nas relações internacionais —, a Rússia invoca com mais razão o direito à sua segurança do que alguma vez o fizeram os EUA ou a UE.
Confrontado com a sua própria decadência, o imperialismo norte-americano pôs em marcha uma nova guerra-fria tendo por alvos principais a Rússia e a China. É neste quadro que a questão ucraniana tem de ser avaliada. O Ocidente fez dos ucranianos carne para canhão: provocou uma mudança de regime em 2014 por meio de um golpe de estado, planeou a integração do país na NATO, levou ao extremo o confronto com a Rússia desconsiderando todas as suas reclamações, fechou os canais diplomáticos, instigou o confronto militar. E agora procura tirar dividendos junto da opinião pública, apontado a Rússia e Putin como intratáveis.
A Europa, mesmo com algumas tentativas frouxas de intermediação, acabou por sujeitar-se à linha dura definida a partir de Washington. Ainda mal refeita da devastação pandémica, vai arcar com o grosso dos previsíveis prejuízos da guerra: nova onda de refugiados, aumento geral dos preços, quebra nas reservas de energia, agravamento da estagnação económica, maior dependência face aos EUA. E, em vez de procurar vias de apaziguamento, lança achas na fogueira ucraniana e envereda pelo caminho da sua própria militarização, como bem mostrou o anúncio pelo chanceler Scholz de uma “nova era” na política de defesa da Alemanha.
A generosidade europeia em receber refugiados vai a par do fornecimento de armas ao regime de Kiev; a glorificação do patriotismo dos ucranianos é acompanhada de mirabolantes prognósticos de uma derrota militar russa. Tudo isto é uma fina cortina de fumo para esconder a falta de vontade que EUA e UE demonstraram em evitar a guerra e a aposta que fizeram de atirar a Ucrânia para o conflito, sabendo perfeitamente que o país não teria qualquer possibilidade de resistir. Toda a ajuda agora prestada a Zelensky destina-se apenas a prolongar a guerra para desgastar a Rússia o mais possível, à custa dos sacrifícios da população ucraniana.
As vozes que lamentam a falta de músculo da NATO e do Ocidente e fazem irresponsáveis apelos às armas são fruto directo da mesma política de confronto que empurrou os ucranianos para a frente de batalha. Têm o objectivo de criar condições para que a opinião pública mundial aceite o agravamento do conflito com a Rússia — em clima de nova guerra-fria — numa lógica primária de ou-nós-ou-eles, de razoabilidade contra loucura.
As campanhas de diabolização de Saddam Hussein, de Muhamar Kadafi, do Islão, do mundo árabe, as teorias sobre o “choque de civilizações”, as mentiras montadas pelos serviços secretos — e o papel que tudo isso teve na preparação das opiniões públicas para as guerras que se seguiram — mostram o caminho que está a ser aberto quando se insulta Putin, o regime russo e a própria Rússia da forma mais descabelada.
Ver no conflito ucraniano uma luta entre duas concepções do mundo, entre autocracia e democracia, entre tirania e liberdade é uma mistificação. O que se disputa é o espaço que a perda de hegemonia do Ocidente imperialista deixa às novas potências que ontem estavam na sombra e eram por isso amesquinhadas, e que agora se afirmam com capacidade para competir no tabuleiro mundial.
A nova ordem que o conflito anuncia, não se sabe ao certo que forma irá ter. Mas é seguro que reflectirá a alteração irremediável da balança de forças mundial. O alinhamento pelo campo dos EUA e da UE a pretexto de que representam “A Democracia” e “A Liberdade” é na verdade mais um episódio de capitulação — não já perante uma força ascendente, mas diante de um velho mundo em queda.
Comentários dos leitores
•MANUEL BAPTISTA 4/3/2022, 12:43
Estou de acordo com a tua análise. Estamos na hora ais sombria - também - do campo geral da esquerda. Repete-se a capitulação face ao eclodir a Guerra Mundial em 1914. Mas agora, em vez de ser sob forma de comédia ou farsa (como dizia Marx) arrisca-se a ser uma catastrofe global. Ver os meus argumentos a favor de uma paz imediata aqui: https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2022/03/10-consequencias-da-guerra-de-qualquer.html
•Chico da Emilinha 4/3/2022, 14:47
GRATO
pelo esclarecimento
que tenho por uso
normal.
ABRAÇO
•afonsomanuelgoncalves 5/3/2022, 11:24
Um texto muito bem elaborado e extremamente fiel à verdade histórica que neste momento se atravessa. O Ocidente arrogante do passado estâ reduzido a um desespero irremediável. É o momento de reflectir seriamente toda a farsa histórica que nos tēm vendido e dar um passo em frente.
•Leonel Lopes Clérigo 7/3/2022, 14:06
Os méritos do texto acima de MR já foram referidos nos 3 comentários que se lhe seguiram.
Este meu comentário procura ir numa outra direcção ao tentar abordar uma questão expressa naquele texto: "... a aposta que fizeram (USA e UE) de atirar a Ucrânia para o conflito".
Salvo raríssimas excepções, toda a nossa COMUNICAÇÃO SOCIAL - incluindo a IMPRENSA DESPORTIVA o que foi uma "novidade às claras" - assim como as ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS (com excepção do PCP) vieram lançar o "choradinho" dizendo que os ucranianos, "sem saberem ler nem escrever" viram agora o seu país invadido (e digo eu, tal como o foram o Iraque, o Afeganistão, a Síria...)
O que irei colocar aqui baseia-se na convicção de que os POVOS não são assim tão "tapadinhos" como se procura fazer acreditar, "arremessados" ao destino incerto pela força dos "ventos fortes". E isto porque - apesar de existir o "engano" - entendo que se as grandes transformações HISTÓRICAS são feitas precisamente pelo MOVIMENTO (Revoluções) dos POVOS e das CLASSES, carimbá-los de "atrasados mentais" ou "ingénuos" parece-me um contra-senso.
1 - Julgo poder afirmar-se com segurança que os POVOS têm já hoje em comum a "convicção" do seu DIREITO aos benefícios do BEM-ESTAR que o DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO-SOCIAL vem proporcionando. Isso parece-me claro na "PRESSÃO" que hoje se verifica sobre as Fronteiras das áreas ditas DESENVOLVIDAS (USA e EUROPA) o que me trás à "memória" a Pressão dos "BÁRBAROS" (estrangeiros) sobre o IMPÉRIO ROMANO assim como as razões do seu declínio e colapso.
2 - Contudo, o Sistema CAPITALISTA dominante hoje no mundo - apesar das promessas feitas na "origem" - tornou-se, pelo funcionamento de suas próprias LEIS, incapaz de cumprir a BELA PROMESSA de levar o BEM-ESTAR a todo o PLANETA. Mais concretamente, acabou dividindo o mundo dos 194 PAÍSES num pequeno número de DESENVOLVIDOS (o G7 rodeado de um punhado de "remediados") e numa enorme maioria SUBDESENVOLVIDA. Dito de outra maneira: se o surgir do CAPITALISMO se deve à REVOLUÇÃO INDUSTRIAL, apenas o G7 - e uns quantos "remediados" - a fizeram e dela beneficiam, enquanto os SUBDESENVOLVIDOS continuam a "chuchar no dedo" esperando no "limbo" do seu purgatório.
3 - Mas o pior da questão é o facto dos DESENVOLVIDOS INDUSTRIALIZADOS impedirem deliberadamente os outros de o serem. Percebe-se bem a coisa: só um "louco" pode acreditar que, no CAPITALISMO, todos os países do mundo poderão, um dia, serem INDUSTRIALIZADOS. A balbúrdia "Produtiva" seria tanta que a espécie humana acabaria asfixiada em "quinquilharias". E são as próprias LEIS que regem o CAPITALISMO que o IMPEDEM.
O nosso caso é elucidativo: há quantos anos anda PORTUGAL "a tentar" INDUSTRIALIZAR a sua ECONOMIA sem o conseguir? Será que os TUGAS nasceram todos estúpidos e avessos às Máquinas ou seja, avessos a levar a CIÊNCIA à PRODUÇÃO? Deixemos essas histórias da carochinha para os LIBERAIS do Sr. Cotrim e seus amigos.
4 - Se olharmos, mesmo de "raspão", para a ECONOMIA da UCRÂNIA, não há muita diferença entre ela e a Portuguesa o que não é de admirar: hoje, são ambas SUBDESENVOLVIDAS. E apesar da Ucrânia possuir o maior território europeu - depois da Rússia - com excelentes terras agrícolas e uma desenvolvida pecuária, petróleo, gás natural, larga variedade de minerais no subsolo, etc...lá vem a disseminada conversa fiada do ECONOMÊS: a "Economia UCRANIANA permanecesse HOJE vulnerável a choques exteriores", um modo "DOCE" de dizer que é SUBDESENVOLVIDA e sempre pronta a "apertar o cinto" assim que desponta a CRISE CÍCLICA ("curta" ou "longa") do CAPITAL.
5 - Quando em 1991 se deu o "desmembramento da União Soviética", a UCRÂNIA ganhou sua independência ou seja, ficou entregue à SELVA do famoso MERCADO MUNDIAL. E nada mais natural que, ao entrar no mundo LIVRE, trouxesse consigo enormes esperanças de DESENVOLVIMENTO: liberta da "pressão do SOCIALISMO da MISÉRIA", acreditava ter entrado no PARAÍSO e, agora, seria "sempre a abrir". Bastava, para isso, adoptar os sábios conselhos: Privatizar, Privatizar, Privatizar!... e Tercearizar. Uma receita MACROECONÓMICA de larga "performance" que teve como resultado uma crise social de todo o tamanho criando as condições para a entrada dum nosso velho conhecido, um guardião dos SUBDESENVOLVIDOS: o FMI. E sabemos como este leva sempre agregado a si a "CONFIANÇA dos INVESTIDORES", coisa essencial para, milagrosamente, estancar o inferno da DÍVIDA EXTERNA.
5 - Mas acontece que a UCRÂNIA tem seu território posicionado numa zona geográfica ESTRATÉGICA: a "ZONA de CONFLITO". E mesmo que os UCRANIANOS fossem uns "otários", já toparam isso há muito tempo. A "nova elite" política da UCRÂNIA - saída da REVOLUÇÃO LARANJA - julgou ser "favas contadas" jogar nas CONTRADIÇÕES com base nessa posição geográfica. Ou seja: mal comparado, era como se nós, portugueses, fossemos para a "praça pública" apregoar o aluguel dos Açores a troco da INDUSTRIALIZAÇÃO de PORTUGAL, à semelhança do que fez Salazar na Batalha do Atlântico.
Assim pensaram os dirigentes ucranianos: tirar proveito de pertencerem aos dois MERCADOS - o Europeu e o Russo - parecendo desconhecer que "fazer dominó para os dois lados" é coisa que raramente acontece no jogo das DAMAS. A Rússia não foi nessa e impôs a escolha: ou uma coisa ou outra. E a UCRÂNIA mudou-se com "armas e bagagens" para o Ponto Cardeal do Ocidente. E teve a imprudência de não contar com o "sentença" que MILTON FRIEDMAN divulgou: "Não há almoços grátis".
6 - Em minha fraca opinião, não deixa de ser louvável a luta dramática dos Povos pelo seu DESENVOLVIMENTO, apesar das muitas dificuldades e perigos. E há um velho provérbio que nos pode ajudar a percorrer esse caminho e que a Ucrânia parece "mostrar": "Quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos". As coisas demoram tempo a construir: não basta "regar e pôr ao luar".
Sair do SUBDESENVOLVIMENTO trás trabalho e sacrifícios, muita incerteza e derrotas: o mundo está cheio delas. O IMPERIALISMO - o viver-se BEM à custa do alheio - é coisa velha na HISTÓRIA, bem enraizado e detentor de muitos truques, difícil de derrotar e eliminar num futuro próximo. Mas desistir, é como comprar um bilhete para o Inferno.
•Joaquim F. Pires Correia 2/4/2022, 23:22
Muito interessante este artigo ! Pena que os mídia representantes do grande capital Europeu e Americano não tenham jornalistas, críticos , sérios profissionalmente e intelectualmente !
Na verdade são as marionetes do Grande Capital Financeiro na frente da intoxicação e alienação dos povos !