A esquerda perante a ofensiva imperialista

Manuel Raposo — 26 Janeiro 2022

Expansão da NATO para a Ucrânia é mais uma provocação à Rússia

O mundo está a ser arrastado para uma nova guerra fria. O extremar dos conflitos em torno de Taiwan e da Ucrânia são disso evidência. As maiores potências alinham forças, forjam alianças e preparam-se para confrontos que ultrapassam a mera competição económica e podem resvalar para o confronto militar. Que atitude deverá ter a esquerda anticapitalista e anti-imperialista a este respeito? Será possível manter uma posição de neutralidade e de equidistância sem tratar de saber quem agride e quem é agredido, quem provoca e quem se defende? A réplica que faço ao artigo de António Louçã “Putin e Xi Jinping, os favoritos do imperialismo” procura trazer estas interrogações para uma discussão aberta, na ideia de contribuir para que a esquerda não passe ao lado de acontecimentos que certamente vão marcar o nosso futuro próximo.

 

Caro António Louçã

Alinho umas quantas notas (algumas objecções ao que dizes e outras considerações) suscitadas pelo teu artigo “Putin e Xi Jinping, os favoritos do imperialismo”.

Os favoritos. Nem por ironia, acho eu, se poderá dizer que Putin e Xi Jinping são os favoritos do imperialismo. Os seus favoritos são personagens como Ieltsin, que praticamente destruiu a Rússia e a vendeu aos bocados, ou como o magnata Jack Maa, que alimenta a ambição de abrir a economia chinesa à especulação bolsista, quebrando o controlo do estado sobre o sector financeiro chinês, com a consequência evidente de o entregar à voragem da finança internacional. Num caso como no outro, os propósitos desses personagens falharam. Nisso, o ocidente imperialista perdeu uma batalha, e tem para já de contentar-se em apoiar rebotalhos do tipo Navalny ou trânsfugas como Ai Weiwei. 

A Rússia tem vindo a reerguer-se, apesar de tudo, e a refazer as suas ambições nacionais. A China controla, por enquanto, a gula mais extrema dos grandes capitalistas externos e internos. E ambos estendem a mão aos países dependentes. São estes factos que põem em pânico a troika imperialista EUA-UE-Japão (a Tríade, como bem lhe chamou Samir Amin) por uma razão sabida: ameaçam a sua hegemonia sobre o mundo.

Agressores e agredidos. Condenar uns (EUA) por perseguirem planos imperialistas e serem hipócritas e, do mesmo passo, condenar outros (Rússia e China) por serem ditadores e violadores dos direitos humanos é uma atitude salomónica que não responde ao problema que o mundo hoje enfrenta e diante do qual a esquerda revolucionária tem de se posicionar. 

O facto é que são os EUA e os seus aliados que estão (desde sempre, aliás) na ofensiva para condicionar, minar e, se possível, desarticular (política e territorialmente) a Rússia e a China. E estes respondem como podem para se defenderem desse cerco. Uns agridem, outros defendem-se da agressão. Sem fazer esta distinção nada fica claro, e a esquerda revolucionária fica incapaz de ter um papel nos acontecimentos, passando ao lado da realidade.

Ucrânia e NATO. A questão ucraniana começou em 2014 com um golpe promovido pelos EUA e pela UE assente em forças fascistas ucranianas, que derrubou um presidente formalmente legítimo e colocou no poder um mandarete do Ocidente. Seguiu-se o “pedido” das novas autoridades ucranianas para a adesão à UE e à NATO. A reacção russa, quer na recuperação da Crimeia, quer no apoio às repúblicas rebeldes de Donetsk e Lugansk, quer agora na pressão militar, é uma resposta a este aperto.

Mais, o aperto estende-se à Bielorrússia e aos recentes “desejos” da Geórgia, e ainda da Finlândia e da Suécia (veja-se a coincidência…) de integrarem a NATO. Desde 1990, apesar das garantias de Ronald Reagan e George H. Bush dadas ao pacóvio Gorbachov, catorze países do leste europeu passaram a integrar a NATO. Gorbachov: ora aí está outro dos favoritos do imperialismo.

Direitos humanos. Depois de James Carter, em finais dos anos 1970, ter tirado da cartola a defesa dos direitos humanos, o imperialismo passou a praticar os mesmos actos de agressão de sempre, mas debaixo de uma capa renovada. E tem tido êxito, reconheça-se, em neutralizar boa parte da opinião pública mundial, que tem ficado numa atitude pasmada diante de crimes disfarçados de boas acções “humanitárias” destinadas a desbancar “ditadores” que maltratam “os seus próprios povos”.

Os problemas sociais existentes na Bielorrússia ou no Cazaquistão, ou noutro lado qualquer, desencadeiam protestos populares? Certamente, e ainda bem. Mas seria grande ingenuidade não ver o interesse (e a intervenção, aberta ou encoberta) do ocidente imperialista nestes acontecimentos. Como é óbvio, os problemas sociais desses países não podem legitimar as pressões políticas, as sanções económicas ou as acções militares do imperialismo.

Ora, tem sido à pala de direitos humanos, ajuda humanitária, etc., que a Tríade tem invocado o direito de intervir onde bem quer, fazendo-o evidentemente de forma seleccionada: procurando, sempre que pode, “mudar o regime” nos países que escapem à sua obediência, e preservando os regimes dos que estejam na sua esfera. É por este critério que Jugoslávia, Iraque, Líbia, Irão, Coreia do Norte, Venezuela, Bolívia… são postos debaixo de fogo; e Israel, Arábia Saudita, Brasil de Bolsonaro, Polónia dos irmãos Kaczynski… são mantidos debaixo da asa.

Inconsequência? Acusar os EUA e comparsas de praticarem “retórica vazia” ou de fazerem protestos “sem significado prático” diante de “direitos humanos espezinhados” parece apontar para uma atitude de inconsequência que eles na verdade não têm. Levada à letra, uma tal acusação obrigar-nos-ia a exigir-lhes consequência, ou seja, maior e mais dura intervenção do que aquela que já levam a cabo. 

Isso faria sentido se tomássemos a sério as preocupações humanitárias do imperialismo, mas não faz sentido nenhum se entendermos que a bandeira dos direitos humanos é um mero instrumento para obter ganhos morais junto da opinião pública e assim conseguir cobertura para intervenções de força, desde sanções a acções militares.

Uigures. Não tenho informações privilegiadas acerca do que se passa na província chinesa de Xinjiang com a população uigur. O que se ouve e lê pelas nossa bandas provém quase exclusivamente dos governos e das agências de informação ocidentais. 

Ainda há poucos dias, a Human Rights Watch — criada e sediada nos EUA, financiada por doadores ricos — veio a terreiro secundar a campanha dos EUA para boicotar os Jogos Olímpicos de inverno na China, inclusive pressionando o secretário-geral da ONU para alinhar na campanha. E lá vinham as acusações ao governo chinês acerca das “atrocidades” supostamente cometidas contra os uigures. 

Neste, como noutros assuntos, não ponho de lado o que dizem as autoridades chinesas. Porquê acreditar mais nas agências ocidentais, que “viram” as armas de destruição massiva no Iraque, do que acreditar no que dizem os chineses, mesmo sendo parte interessada?

E o que eles dizem, para mim, faz algum sentido. A província de Xinjiang, de população turcomana e muçulmana — na fronteira com os países da Ásia Central e com o Afeganistão e o Paquistão — foi alvo de atentados terroristas, com propósitos separatistas, que mataram centenas de pessoas entre finais de 1990 e 2014. Os agentes terroristas terão sido treinados pela Al Caida, nomeadamente no Afeganistão. Parte dos atentados foram praticados pelo Partido Islâmico do Turquestão, uma organização classificada pela ONU como terrorista.

A reacção das autoridades chinesas foi eliminar os grupos terroristas, reprimir os suspeitos de colaboração com os separatistas e promover acções para isolar esses grupos e suspeitos do grosso da população — nomeadamente criando campos de isolamento a que os chineses chamam “centros de reeducação social” ou “centros de treino vocacional” e que os ocidentais, com óbvios propósitos, designam como “campos de concentração”. 

Este é o lado repressivo da resposta. Mas as autoridades chinesas não se ficaram por aqui: reforçaram os planos de desenvolvimento económico e cultural da região para retirar base aos protestos e às veleidades separatistas. 

Alguns números: o rendimento per capita do Xinjiang é de 7.868 dólares, enquanto na região indiana da Cachemira — também muçulmana e também com uma história de terrorismo e separatismo — é de 1.342. De 2014 a 2019 o PIB do Xinjiang cresceu a uma taxa média anual de 7,2%. A frequência escolar é de 99,91% e a cobertura médica é de 99,7% (Maitreya Bhakal, RT, Julho 2021). Recentemente, a China declarou eliminada a pobreza extrema em Xinjiang, tal como no Tibete. 

Esta política de repressão-integração conduzirá à diluição da identidade uigur no conjunto da China, como lamentam as boas consciências ocidentais? Talvez sim. Mas esse é um caminho inevitável para qualquer país que preze a sua independência. Ora, a integridade nacional da China (política e territorial) é um factor chave para o seu desenvolvimento independente, isto é, sem tutela imperialista.

Afirmar que decorre um “genocídio” no Xinjiang (o termo foi cunhado por Mike Pompeo, o secretário de Estado de Trump), não só não tem suporte em factos comprovados, como tem todos os traços de uma peça mais da campanha de diabolização da China capitaneada pelos EUA. Se a opinião da chamada comunidade internacional conta para alguma coisa, o número de países da ONU que tem apoiado esta política da China bate largamente o número dos que a condenam ao arrasto dos EUA e dos europeus.

Hong Kong. Aos protestos em Hong Kong foi dado o estatuto de luta popular pela democracia, e ponto final. Falta perguntar de que democracia se trata. Os sectores sociais que se empenharam nos protestos constituem uma classe média (e não tão média) agarrada aos privilégios que lhe dá a condição especial de Hong Kong, essencialmente um território de capitalismo especulativo, centro bancário e plataforma de comércio mundial. O sector dos serviços representa 86,5% do PIB do território e a indústria apenas 4%, o que dá conta da arrumação social dos perto de oito milhões de habitantes. É uma das zonas mais ricas da Ásia e do mundo com um PIB per capita de 37.191 dólares, contra 8.840 na média da China (2021). 

Não espanta o saudosismo pela colonização britânica nem o apelo repetido à intervenção dos EUA, que os manifestantes nunca esconderam. O movimento foi essencialmente uma reacção contra a integração plena na China. 

Mas para lá desta origem interna, com motivações próprias, há algo mais. Os extremos a que chegaram os protestos não seriam possíveis sem o incentivo dado ao movimento a partir de fora, como foi visível. Ainda assim, o caso foi tratado com pinças pelas autoridades chinesas, até porque, evidentemente, não queriam transformar os manifestantes em mártires “pró-democracia”. 

Uma figura insuspeita, o general Garcia Leandro, ex-governador de Macau, disse em 2019 (Lusa): “Pequim tem tido uma grande contenção”. E acrescentou: “Dá a sensação de que há ali uma mãozinha do exterior a empurrar”. Suspeitos? “Não quero entrar em especulações, mas é evidente que pode haver ali Taiwan, pode haver ali os Estados Unidos”.

Uma vez mais, não ver, ou desvalorizar, a mão do Ocidente no assunto — e dar por inteiramente genuíno, espontâneo e “popular” tudo o que se passou — seria, não só ignorar os factos, como ainda ignorar que praticamente todos os movimentos sociais, em praticamente todo o mundo, se encontram inevitavelmente sobre-determinados pelos interesses e pela hegemonia da Tríade.

Como as comparações também falam, as “pesadas penas” por delito de opinião contra os activistas de Hong Kong ficam muito longe da pena de perseguição, destruição de carácter e possível prisão perpétua aplicada pelos EUA e seus acólitos a Julian Assange — sob silêncio de quase toda a comunidade jornalística e dos defensores encartados dos direitos humanos.

Cortinas de fumo. Não duvido que o renascimento de um movimento operário revolucionário e internacionalista será o último desejo dos imperialismos ocidentais. Mas é esse receio que os leva a fazer de Putin e Xi Jinping os seus favoritos? Por muito desejo que a esquerda revolucionária tenha nesse renascimento, não é essa a realidade diante da qual estamos colocados. 

A possibilidade de, a curto prazo, o proletariado internacional ter uma voz activa nos acontecimentos mundiais é praticamente nula. Precisamente por isso, o imperialismo pode fazer da Rússia, da China, do Irão, da Venezuela, de Cuba, etc. alvos permanentes dos seus ataques sem recear uma resposta massiva, organizada, internacional da parte dos povos e dos trabalhadores. Perante esta fraqueza das forças revolucionárias, a esquerda anti-imperialista e anti-capitalista não pode inventar cenários futuros agradáveis e fugir a tomar posição diante dos acontecimentos presentes. 

O que está em causa, hoje, é a ofensiva imperialista contra a afirmação independente da Rússia e da China. Não só por estes dois países em si mesmos, mas também pelo facto de isso abrir perspectivas de novos rumos para muitos dos países dependentes que até agora não viam maneira de escapar à tutela imperialista. Os apoios da Rússia à Síria, ou da China aos países africanos e sul-americanos (mesmo com óbvio interesse económico por parte da China), ou de ambos ao Irão e à Venezuela são disso exemplos. É este movimento conjunto que ameaça inverter o balanço de forças mundial prevalecente desde a segunda grande guerra.

Diante deste conflito (e não outro, futuro, imaginável ou desejável) é que a esquerda anticapitalista tem de se definir. Só vejo uma definição possível: apoiar tudo o que contribua para o afundamento do imperialismo da Tríade, particularmente da sua cabeça, os EUA. E isto implica, claramente, apoiar a Rússia e a China (e os demais países resistentes) na medida em que a sua política signifique um combate à hegemonia da Tríade.

Esta definição é tanto mais obrigatória quanto, estou convicto, será nas brechas abertas por este confronto que a esquerda anticapitalista encontrará o caminho para renovar e reerguer o movimento revolucionário internacional que falta à época actual.

 


Comentários dos leitores

AP 26/1/2022, 19:38

Concordo com as ideias expressas neste artigo, acho que está muito bom e toca nos pontos essenciais. Queria apenas acrescentar uns pontos.

O plano estratégico Chinês "Made in China 2025", lançado em 2015, teve/tem como objectivo fazer a transição de uma indústria de mão de obra intensiva para uma indústria de capital intensivo. Isto quer dizer fazer a transição da indústria de fancaria (com taxas de lucro mínimas) para uma indústria de ponta que produz bens de alta tecnologia (e taxas de lucro grandes).

A China, enquanto o Ocidente esteve distraído, foi capaz de se tornar líder em inteligência artificial, estar na ponta da computação quântica, aproximar-se da tecnologia de semicondutores do ocidente (com microprocessadores chineses por exemplo), tirar o trono ao iphone, construir uma estação espacial, supreender tudo e todos com veículos hipersónicos manobráveis, tornou-se líder na produção de carros eléctricos, painéis solares, está em processo de se tornar uma referência em energia nuclear. Isto para dar alguns exemplos.

Tudo isto foi o resultado de um processo de industrialização de cerca de 70 anos, em que este plano é um sprint.

Os EUA (e a Europa a mando) têm feito de tudo para bloquear este processo. Desde bloquearem a venda de microprocessadores de última geração, até bloquearem a venda de máquinas de litografia (máquinas que fazem microprocessadores), quando os chineses passaram a fazer os seus. Bloqueios de importações sobre os mais diversos motivos, desde os Uighurs, a Hong Kong, etc.

Todo o ataque à China, sob a capa dos direitos humanos, surgiu nestes últimos anos. Coincidência das coincidências, isto aconteceu ao mesmo tempo que a China saiu da toca e mostrou que queria e pode ser uma potência igual aos EUA e Europa e, com isso, ter acesso à sua parcela do mercado mundial. O bom, aquele onde se faz dinheiro a sério, não o da indústria de segunda.

Assim sendo, qualquer acção que promova a limitação, directa ou indirectamente, do desenvolvimento de um país é, a meu ver, compactuar com o imperialismo ocidental.

Não acho que a Rússia ou China sejam paraísos (não existem paraísos) mas tendo em mente a luta contra o capitalismo, qualquer desenvolvimento que promova a divisão e o desequilíbrio do capitalismo é bem vinda. (Para não falar dos benefícios claros que a população chinesa tem tido nos últimos 50 anos, algo único em qualquer outro país neste mesmo periodo. E claro, sem dizer que as questões internas de um país só dizem respeito aos seus cidadãos.)

chico 28/1/2022, 12:58

Só uma pequena observação ao texto de AP: parece que no modo de produção capitalista a taxa de lucro tende a diminuir com o aumento do capital constante, é aliás essa a base da auto destruição desse modo de produção ao longo do tempo.

AP 31/1/2022, 17:29

Caro Chico

Dado o teu curto comentário não consegui entender onde queres chegar. Podes especificar melhor o que queres dizer?

antonio alvao 4/2/2022, 21:12

(...) - "as questões internas de um país só dizem respeito aos seus cidadãos" (AP).
"Se o sofrimento do outro não te afeta, quem precisa de ajuda és tu" (...).
"O proletariado não tem pátria" (...).
"Eu não serei um homem livre enquanto em qualquer parte do Mundo houver um oprimido" (...).
"Quem for anti-opressão, não deve perguntar ao oprimido quem o oprime, e depois condenar ou não, conforme as simpatias pelo carrasco e superpotência" (...).

Na minha opinião, por vezes, os textos falam mais de nós do que dos assuntos que pretendemos analisar(?).

AP 6/2/2022, 14:43

António Alvão, ataques pessoais ao lado, e tentando ignorar a melodia sentimental dos violinos a tocar por detrás de cada citação (como se fossem argumentos), vou tentar responder seriamente.

Há um livro de ficção científica de Lloyd Biggle Jr. que se chama "The Still, Small Voice of trumpets" ["As trombetas da revolução" no título da tradução portuguesa]. Este livro retrata as acções do Interplanetary Relations Bureau (IPR) que se dedica a trazer planetas habitados, recentemente descobertos, para a federação interplanetária. No entanto os planetas precisam de ter um regime democrático para que tal aconteça. E mais interessante é o lema do IPR: ""Democracy imposed from without is the severest form of tyranny" ["A democracia imposta de fora é a pior forma de tirania", minha tradução].

Tal como as tuas citações, esta frase não vale nada. Apenas encerra em si, tal como dizes, uma ideia (tal como as tuas encerram nelas uma ideia).

Ao contrário da tua posição (julgando pelas tuas citações das ideias de outros), não acredito que eu, e muito menos os governos burgueses ocidentais, são o dententor da Democracia, o possuidor da Liberdade pela qual todos os outros se devem reger. Ainda para mais eu nunca tendo ido à China, nem tão pouco ter falado sequer com um Uighur para amostra. Nem tão pouco acho que deo apoiar os governos burgueses, ora com "bombas humanitárias" [parece surreal, mas foi dito no passado], ora com sanções económicas, etc. Sanções económicas estas que, como já se sabe de cor, penalizam muito mais o dito proletaria (sem pátria) que os supostos ditadores.

Acreditando na acção directa, vou um passo mais à frente: se se acredita mesmo nessas frases, e se o sofrimento do outro realmente afecta, que se vá para a China viver e ajudar os Uighurs. Seja-se um igual e faça-se a revolução Uighur ao lado deles, não por cima deles, numa atitude paternalista. Digo isto em alternativa, a estar-se sentado na cadeira a ver umas notícias (99% burguesas) e a alinhar a nossa acção com base nisso, pior ainda, ditando do púlpito da nossa arrogância que a democracia (burguesa) é o melhor do mundo e o resto são tudo ditadores. Mas depois Guantanamo ainda funciona e não vejo nenhuma sanção aos EUA. O Iraque foi destruído e não vejo nenhuma sanção a Portugal, EUA, Espanha, Inglaterra. A Síria está o que está e também não vejo sanção nenhuma. Ou seja, olhando de fora, quase que parece que há um peso para o imperialismo burgues e outro para o resto.

É importante distinguir duas coisas. Uma é o internacionalismo proletário, outra coisa é o internacionalismo burguês (i.e., imperialismo).

E concordo contigo, os textos falam mais de nós do que os assuntos que pretendemos analisar.

antonio alvao 8/2/2022, 21:38

Amigo AP (que não sei quem é, também não faz mal). Eu não tenho problemas em ser identificado por aquilo que escrevo e por defender aquilo que entendo que devo defender, sem sectarismo e ter em atenção que poderei estar mal nas minhas apreciações, até prova em contrário.
Há textos de alguns amigos, que me fazem lembrar o PREC (que o vivi intensamente) e assisti a muito sectarismo, e muita hipocrisia ideológica: batalhas campais entre foices e martelos: uns eram "sociais-fascistas; outros a "CIA". O Mao, já anos antes e nesta altura, recebia em Pequim a cúpula do imperialismo norte-americano: Nixo, Ford, Kinginger e outros. A cúpula do PCC, tinha melhores relações com estes, do que com os soviéticos, e os moistas não se zangavam com o camarada Mao. O MES, que ajudavam os pcs. a boicotar os comícios do MRPP, também se diziam pró comunismo - esta organização caiu inteirinha nos braços do capitalismo. Muitos governos europeus e da América Latina, do centro esquerda e centro direita, estão cheios de antigos trotskistas, estalinistas/maoistas, etc. inclusive governos portugueses. Existe alguns que se mantem fieis às suas convicções - esses têm o meu respeito, mesmo divergindo ideologicamente.
Depois de fazer um estudo profundo ao fio-condutor dos ADNs ideológicos dos partidos e organizações políticas; revoluções; história do movimento operário, etc. - entretanto nasceram-me duas costelas Anárquicas (que gosto muito delas), este nascimento aconteceu ainda estava em organizações políticas - que já morreram! Não fui purgado, nem executado por causa das costelas. Testemunha da minha luta anti-imperialista, anticapitalista, etc. foi Pedro Goulart (que muitos de vocês conheceram), infelizmente já não está entre nós. Todavia se o meu amigo AP estiver em condições de me dar lições de luta contra isto e contra aquilo, e o que são ditaduras, eu aceito e até posso pagar à hora.

Eu também não vejo muita coisa que gostaria de ver... Estes países ocidentais, burgueses, capitalistas, exploradores, etc. Que sou radicalmente anti. Todavia, eu poço combater tudo isto, com armas que tenha ao meu alcance, poço ter costelas Anárquicas e até o corpo todo, que não sou executado por tal motivo. Nas ditaduras, não ficou nenhum Anarquista para a semente, inclusive aqueles que fundaram o PCC! Entende o meu amigo AP?

AP 9/2/2022, 14:36

Caro António Alvão,

De todo não entendo a resposta a puxar aos pergaminhos. Um bem haja pelo teu passado (e já agora pelo presente e pelo futuro). Honestamente, não vejo na tua resposta qualquer conexão à discussão que estamos a ter. Os pontos que estão em discussão são os seguintes:

1. Desenvolvimento económico de um país periférico é relevante no contexto da luta contra o capitalismo? Eu acho que sim, principalmente sendo esse país um país com a dimensão da China tem um impacto gigante no capitalismo.

2. O Ocidente industrializado está ou não com receio do desenvolvimento económico chinês? Eu não tenho dúvidas nenhumas que sim. Este desenvolvimento económico come mercado ao Ocidente, desequilibra o balanço de forças, e cria maiores contradições no capitalismo que (como todos aqui sabemos) sobrevive apenas da troca desigual (trabalho vs capital, capital central vs capital periférico, etc).

3. O Ocidente está ou não activamente (pelo menos desde 2015) a bloquear o desenvolvimento económico da China com as mais diversas sanções económicas (e não só)? Eu acho que sem dúvida está. Aliás, já Rosa Luxemburgo apontava o papel fundamental do imperialismo.

4. O Ocidente, com vista a puxar as pessoas a apoiar o ponto 3, está ou não activamente (como já fez com o Iraque, Síria, Venezuela, Afeganistão, etc) a tentar passar uma ideia de que a China é um país muito mau, com pessoas muito más, que, tal como os soviets, comem criancinhas ao pequeno almoço? Eu acho que sem dúvida está. É necessário criar uma justificação para este bloqueio que, à partida, não faz qualquer sentido a uma pessoa sensata.

Portanto, com base neste três pontos a questão que se coloca é a seguinte. Devemos seguir o flautista de Hamelin e enveredar por uma acção anti-China que apenas beneficia o imperialismo da burguesia Ocidental? Perguntei-te e não respondeste António Alvão: com que grau de certeza sabes que todos os ditos crimes humanitários são mesmo reais? Vives na China? Falaste com Uighurs? Se não, estás apenas a seguir o que vês nas notícias burguesas que, a meu ver, têm um interesse concreto, como disse acima no ponto 3. Portanto pergunto: como sabes que não estás a ser mais um peão no tabuleiro de xadrês do imperialismo burguês? Parece-me uma questão legítima, ou achas que não?

Para além da questão acima, eu dou ainda um passo em frente. Mesmo que eu soubesse de certeza que de facto os Uighurs estão a ser muito oprimidos, não me cabe a mim, a partir da Europa, decidir o que é bom ou mau para eles. Cabe-lhes a eles fazer a sua luta contra essa opressão, não a mim de fora. Se eu, de facto, acredito seriamente nessa sua luta e quero ter um papel, só de dentro devo ter esse papel. E isto leva-me ao final da minha resposta.

Uma coisa faz-me confusão. Como é que uma pessoa que se diz anarquista tem uma posição que defende impor algo de cima (e de fora)? Não é essa imposição (mesmo assumindo boas intenções, que eu fortemente discordo) contra os princípios anarquistas de auto-determinação e auto-organização?

Quem é António Alvão para dizer aos Chineses e Uighurs o que é certo ou errado para eles? Eu, com as minhas duas costelas Stalinistas (da parte da mãe e do pai) fico espantado com a tua posição, especialmente dizendo tu que tens duas costelas anarquistas.

Portanto reafirmo: é-me muito difícil entender o que dizes.


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