O nó górdio do crescimento económico

Manuel Raposo — 9 Janeiro 2022

Em 12 anos, a parte do trabalho no PIB caiu de 65,8% para 54,7%. Os 11,1 pontos de diferença foram para o prato da balança do lado do capital

Promessas de crescimento económico, das mais variadas, são cavalo de batalha de todos os candidatos às eleições de 30 de janeiro, com presença obrigatória em todos os programas. Mas, ano após ano, a ideia teima em não ter resultados práticos. Porque não progredimos verdadeiramente desde há décadas? Porque é tão difícil concretizar uma política de crescimento viável? Porque é que as percentagens de crescimento, quando as há, são anémicas, sem efeitos reais nas condições de vida da população? E porque é que, mesmo nesta penúria, as fortunas se acumulam do lado do capital?

1 É argumento comum — e comum a todo o espectro partidário — que sem aumento da riqueza não pode haver aumento de salários, nem mais benefícios sociais, nem melhoria de condições de vida em geral. E isto passa por ser uma verdade incontestável. Assim colocada, porém, a relação entre riqueza produzida, crescimento económico e melhoria das condições de vida é inteiramente mistificada. 

2 “A economia” de que se fala é a economia capitalista e não uma qualquer economia geral e abstracta. Assentando o capitalismo na exploração do trabalho assalariado, obviamente que uma parte tendencialmente crescente dos ganhos de riqueza são chamados a si pelo capital; e apenas uma parte tendencialmente decrescente da riqueza produzida é conduzida para salários e benefícios sociais em geral. Não estritamente por razões económicas, mas porque a ordem social instalada assim o determina.

3 Em 2004, a parte do trabalho no produto interno bruto nacional era de 65,8%; doze anos depois, em 2016, caiu para 54,7% (dados da OIT, 2019). Os 11,1 pontos de diferença deslocaram-se para o prato da balança do lado do capital. Note-se: este período, com um crescimento/estagnação médio anual de 0,35%, abrange a crise desencadeada em 2008, prolongada até hoje; fica à vista a brutal transferência de riqueza do trabalho para o capital, mesmo (e sobretudo) quando os negócios se afundam.

4 Ao contrário do que sugerem os entusiastas do crescimento económico, crescimento não significa automaticamente melhoria para quem vive do seu trabalho, mas significa directamente melhoria para quem vive do trabalho de outrem. Prova suplementar: o número crescente de trabalhadores (no activo, empregados) em condição de pobreza.

5 A este conflito de interesses, de sempre, entre capital e trabalho — em que um ganha o que o outro perde — acrescem hoje factores novos que travam e distorcem o crescimento económico, dando conta do envelhecimento irreversível do próprio sistema de produção capitalista. E é aqui que reside o fundo do problema.

Factor um: o domínio esmagador dos monopólios nacionais e internacionais. Em vez de promover, este domínio bloqueia o desenvolvimento porque o sujeita às conveniências dos grandes grupos económicos e das potências que os albergam e protegem. 

Factor dois: a deriva financeira, levada ao extremo, do capitalismo contemporâneo. Esta evolução revela a incapacidade do sistema no seu conjunto para canalizar recursos para a produção socialmente útil — só porque ela deixou de ser suficientemente lucrativa. Por isso, a par de fortunas colossais acumuladas em prazos mínimos através da especulação bolsista e das ajudas dos Estados, crescem por todo o mundo os milhões de deserdados.

6 As principais vítimas são os países e regiões mais fracos e dependentes. Mas também a economia global é afectada, como se vê pela estagnação que a atinge desde há décadas.

7 Portugal é um país manietado.  Membro menor de uma união imperialista, subordinado às grandes forças do capital internacional, dominado por uma burguesia nacional entrelaçada com tais interesses — não tem espaço próprio para um desenvolvimento independente. O fraco crescimento económico do país, nas franjas da paralisia, é fruto directo desta posição de dependência, inteiramente assumida por toda a classe dominante nacional como condição da sua sobrevivência. 

A imagem da nossa dependência pode bem ser dada pelo papel cimeiro que o turismo — com todos os seus desdobramentos, da hotelaria ao alojamento local, à restauração, à construção, ou à especulação imobiliária — tem na nossa estrutura económica, sujeitando vastas regiões e milhares de trabalhadores à condição de prestadores de serviços sazonais e precários.

8 As lamúrias do capital nacional e dos seus representantes políticos pelo fraco desempenho económico — quase sempre acusando o desempenho do trabalho e aí procurando pretexto para fazer regredir a legislação laboral — só podem, portanto, ser devolvidas à procedência.

9 É nesta teia, e não outra, que os milhões “da Europa” vão cair, agora ao abrigo do PRR. O entusiasmo dos grandes grupos capitalistas e das forças do poder com a “oportunidade única” de “reformar” o país e de “impulsionar” o sistema económico valem tanto como têm valido as sucessivas promessas e planos de crescimento. O nó continuará por desatar.

10 Os milhões que vierem serão direccionados para os interesses instalados e para os mais poderosos de entre eles, porque, na lógica que prevalece, são eles efectivamente os mais aptos a tirar pleno partido dos investimentos prometidos. 

Isso quer dizer que a rede de relações a que eles hoje obedecem não será alterada. Pelo contrário, a tendência será para uma eliminação sistemática dos sectores económicos mais fracos e pequenos, com reforço dos laços voluntários de dependência do grande capital nacional face aos monopólios europeus, e, com ele, de todo o capital nacional.

11 O crescimento económico e, acima de tudo, a melhoria das condições de vida da massa trabalhadora não dependem, pois, da argúcia das propostas económicas. Dependem de uma alteração nas condições de domínio do capital sobre o trabalho, do balanço de forças entre um e outro. Desatar este nó só pode resultar da intervenção política das classes trabalhadoras, hoje inteiramente apagada. Não deveria ser esse o primeiro combate da esquerda?

 


Comentários dos leitores

Leonel Lopes Clérigo 12/1/2022, 11:56

Este texto de MR deixou-me uma dúvida - para mim é grande... - que passo a expor.

Diz MR no ponto 11: "O crescimento económico e, acima de tudo, a melhoria das condições de vida da massa trabalhadora não dependem, pois, da argúcia das propostas económicas. Dependem de uma alteração nas condições de domínio do capital sobre o trabalho, do balanço de forças entre um e outro."

Pergunto: Admitindo com MR, que UM DIA DESTES... se alteram as "CONDIÇÕES de DOMÍNIO do CAPITAL SOBRE O TRABALHO" (sendo favorável a este...), será SÓ nessa ALTURA que irá ENTRAR na ORDEM do DIA a "ARGÚCIA DAS PROPOSTAS ECONÓMICAS"?

Nota: Esta minha dúvida ao texto de MR trouxe-me à memória o de Preobrajenski "A luta entre as duas leis" e que se inicia do seguinte modo: " Passamos agora ao último problema, o mais interessante do ponto de vista teórico que é questão da luta entre as duas leis - a lei do valor e a lei da acumulação socialista no interior da economia soviética"


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