“Dos nossos irmãos feridos”

Manuel Raposo — 22 Dezembro 2021

Fernad Iveton. Torturado com choques eléctricos e afogamento. Guilhotinado em Fevereiro de 1957 “para exemplo”

Em Novembro de 1956, Fernand Iveton, um operário torneiro argelino de origem francesa, é preso em Argel, acusado de ter colocado uma bomba no armazém da fábrica Gaz d’Algérie onde trabalhava, por denúncia de um contramestre. A bomba, que apenas se propunha causar estragos sem fazer vítimas, não chegou sequer a explodir. Mesmo assim, três meses depois de ser preso, Iveton é guilhotinado na sequência de um julgamento apressado cujo único propósito era dar uma lição exemplar aos independentistas argelinos, sobretudo àqueles de origem francesa que se juntaram à luta de libertação. A guerra de libertação da Argélia tinha começado em 1954 e levaria à independência do país em 1962.

O livro “Dos nossos irmão feridos”, da autoria do francês Joseph Andras, foi publicado em 2016. A edição portuguesa, de 2021, é da Antígona Editores Refractários. É a história ficcionada dos três meses de cativeiro de Iveton, com breves incursões na sua vida passada em França e na Argélia.

Em estilo vigoroso, seco, quase de relato, é-nos dado um panorama da brutalidade do colonialismo francês — massacres sistemáticos de camponeses rebelados, execução de militantes independentistas, torturas bárbaras de prisioneiros — na tentativa desesperada de travar o inevitável: a libertação de Argélia. Mas, ao mesmo tempo, o autor coloca-nos diante das motivações íntimas que levam um indivíduo a juntar-se a uma causa que o ultrapassa enquanto indivíduo e faz dele um átomo (um “irmão”) de uma maré social imbatível. “A vida de um homem, a minha, conta pouco”, terá dito minutos antes de ser executado.

Recordemos que, na altura, a França tinha saído há pouco mais de dez anos da Segunda Grande Guerra. A burguesia francesa, que se vergara quase toda à ocupação alemã, empenhava-se na “reconstrução” do país. Dessa “reconstrução” fazia parte a recuperação do império colonial: com as sangrentas guerras da Indochina (perdida em 1954) e da Argélia, o capital francês mostrava os dentes. Teve do seu lado grande parte das classes médias e contou com a colaboração do próprio Partido Comunista Francês que, no caso da Argélia, sempre desconfiou dos nacionalistas, considerando prematura a independência do país (Maurice Thorez, líder do PCF, considerava a Argélia “uma nação em formação”).

Iveton, que adere ao Partido Comunista Argelino, sofre os embates desta política colaboracionista e das suas decorrentes traições. O PCA, altamente influenciado pelo PCF (que via nele uma extensão sua), hesita em aderir ao movimento de libertação liderado pela Frente de Libertação Nacional e pelo Exército de Libertação Nacional. Depois, por pressão sobretudo dos sectores mais jovens, e num acordo de compromisso, acede a que os seus militantes integrem a FLN, mas… a título individual. 

Contrariamente ao que sucedera no Vietname poucos anos antes (1946-54), em que a resistência fora encabeçada pelos comunistas, a luta pela independência da Argélia foi um dos casos em que a acção armada desencadeada pelas forças nacionalistas, em resposta à brutalidade colonial, apanhou de surpresa e ultrapassou os planos políticos do PCF e do PCA. A degradação dos PCs europeus, tornada patente sobretudo na sequência da Segunda Guerra, de que o PCF é um exemplo, transmitiu-se assim ao PCA, inclusive por via dos muitos militantes seus de origem europeia. 

Apesar do anticomunismo e do confessionalismo muçulmano existentes na FLN e no ELN, os factos mostram a incapacidade do PCA de liderar, ou integrar com peso político determinante, a batalha pela independência argelina. Milhares de militantes do PCA de origem europeia deixaram a Argélia depois da independência, provando-se que não foram verdadeiramente parte da libertação.

Quando é preso e condenado, Fernand Iveton e os seus advogados (nomeados pelo tribunal) esperam que uma campanha pública de protesto faça pressão sobre o governo francês e obrigue à comutação da sentença. Mas, apesar dos muitos apoios, há um silêncio escandaloso por parte do L’Humanité, o órgão do PCF, ao longo de todo o processo. Já antes, o PCF tinha proibido um advogado comunista, Gaston Amblard, de fazer a defesa de Iveton.

Os esforços feitos junto do presidente da República de então, René Cotty, para obter um indulto, são baldados. Com uma hipocrisia notável, Cotty sugere aos advogados de Iveton que ele irá “morrer pela França”, comparando o caso dele ao de soldados fuzilados por deserção na frente de batalha. Responde-lhe um dos advogados que a execução de Iveton não terá o mínimo efeito de intimidação sobre a população árabe — “eles continuarão a lutar, com os meios de que dispõem, não tenha dúvida, senhor presidente”.

6 de fevereiro de 1957: O Conselho Superior da Magistratura, que aconselha o presidente da República, vota pela execução. O vice-presidente do CSM é François Mitterand que vota com os seus pares a morte do militante comunista. Guy Mollet, primeiro-ministro, socialista, aprova.

11 de fevereiro de 1957: Fernand Iveton, 31 anos, membro do PCA e da FLN, delegado sindical da CGT, é executado na prisão de Barberousse com mais dois militantes nacionalistas. Dos 198 prisioneiros políticos guilhotinados durante a guerra da Argélia, Iveton foi o único de origem europeia.

 

Título: Dos nossos irmãos feridos / Autor: Joseph Andras / Editora: Antígona Editores Refractários, Abril 2021


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