Ponto de mira
A nossa democracia a nu
Editor — 9 Dezembro 2021
A agitação que se apoderou dos meios políticos logo que o cheiro de eleições antecipadas ficou no ar tem servido de motivo para um coro de loas à excelência da nossa democracia. Forças partidárias e propagandistas exultam com a sua solidez, com o seu bom funcionamento, com a harmonia entre órgãos do poder, com as “soluções” que ela sempre proporciona. E não vêem melhor processo para que “a vontade popular” possa ser representada senão, claro, em mandatos de deputados.
Ao ouvi-los parece que uma onda de intervenção política nos destinos da nação estaria a mobilizar os quatro cantos do país. Esta espécie de encantamento com a “vitalidade” do regime mal disfarça as fraquezas de todo o sistema político e da sua forma de representação.
Ninguém teve o desassombro de dizer que a dissolução do parlamento foi um acto discricionário ditado pelos cálculos políticos do presidente da República, acto esse que o chumbo de um orçamento do Estado, por si, não justificaria. Ninguém denunciou a vanglória de Marcelo ao vir gabar-se da sua presciência e ao apresentar-se como o mais fiel intérprete de uma opinião pública que, em rigor, ninguém antecipadamente consegue avaliar. Esta conivência espelha uma certa cobardia: dizer que o PR se limitou a fazer uso de um direito constitucional — e ponto final — é fugir à questão política decisiva, que consiste no arbítrio do senhor Rebelo de Sousa, investido, no caso, de plenos poderes presidenciais.
As disputas internas nos partidos da direita, por seu lado, são outra amostra do desvirtuamento (que chega mesmo ao abandalhamento) da democracia, entendida como expressão de uma vontade própria e livre. Apesar de todas as tropelias e de todas as vergonhas publicamente expostas, tais disputas são, ainda assim, apontadas como um sinal de virtudes democráticas. Mas é o contrário. Basta ver os golpes e contragolpes levados a cabo no CDS, entre a elite dirigente, num ambiente de arruaça e de chavascal verbal. Ou a arregimentação de votos pelos barões das estruturas dirigentes no PSD a favor de um ou outro dos candidatos a líder, e a corrida aos lugares nas listas para deputados. Ou ainda a re-re-reconfirmação do gauleiter do Chega no meio de gritarias irracionais sem ponta de política, a que chamam congresso.
As eleições chamadas directas, que agora ocorreram no PSD e no Chega, são outra mistificação de democracia interna. Foi o PS o primeiro a inventar tal prática, “à americana”, quando António José Seguro — acossado por António Costa e não tendo argumentos políticos para se defender — resolveu sufragar o seu mandato de secretário-geral apelando “às bases”.
O processo passa por ser um melhoramento nas práticas partidárias. Na verdade, é uma forma popularucha de convencer os militantes de que têm voto na matéria, fazendo-os apostar em personagens promovidos pela publicidade, em vez de os levar a escolher rumos políticos. As eleições dos líderes, com efeito, precedem neste caso qualquer debate de programas políticos perante os militantes. Com o engodo de um apelo às bases elege-se, de facto, um chefe de facção que fica dotado de todos os poderes. Só depois, ele e a sua corte tratam de formalizar um qualquer programa político diante de uma convenção partidária — com a certeza quase absoluta de que não será recusado, porque os que elegeram um líder às cegas são os mesmos que ratificam as suas propostas.
Uma espécie de mística dos números, onde prevalecem as percentagens, é outra arma de propaganda que oculta os níveis reais de participação nos actos partidários. Quanto ao Chega, pouco se fala da disparidade gritante entre militantes anunciados e militantes votantes. O que cai na opinião pública é que o líder foi eleito com percentagens esmagadoras de votos. Na realidade, numa eleição interna realizada em Março, de quase 28 mil anunciados militantes apenas 3 mil votaram. O mesmo na mais recente eleição, em que Ventura arrecadou 94,78% dos votos de um universo desconhecido.
A respeito do CDS, exaurido por uma fuga em massa para a extrema direita, não se revela sequer quantos efectivos mantém para que ainda possa ser apresentado como força partidária. Coisa parecida quanto ao PSD, candidato a governar o país. Na disputa entre Rio e Rangel o universo de eleitores foi de 42 mil (muitos dos quais pagaram as quotas à pressa…), menos de um terço dos 142 mil filiados propalados em 2006.
Casos como estes (que certamente não se cingem aos partidos da direita) mostram um alheamento crescente dos cidadãos, sobretudo das classes populares, em relação aos actos partidários, tal como acontece com os actos eleitorais nacionais, o que fere de morte a representatividade e a legitimidade política que os arautos do regime continuam a reclamar.
Os inquéritos de opinião ajudam a esta missa, com o ar de que perscrutam os propósitos ou os desejos do eleitores. Mas o que é perguntado aos inquiridos recai, fundamentalmente, sobre as personagens da ribalta partidária, quase nunca sobre conteúdos de política, pelo que as opiniões sondadas são as que estão prisioneiras da propaganda espalhada pelos próprios partidos e pelos meios de comunicação. A chamada opinião pública é convidada a definir-se sempre sobre esse quadro estreito, previamente delimitado — não sobre as reais necessidades e os conflitos de interesses das diversas classes sociais, nem sobre a forma como os partidos lhes respondem.
É sobre uma população politicamente adormecida e desencantada — expectante sobre um dia de amanhã que não domina — que as próximas eleições vão espalhar os seus slogans, cada vez mais reduzidos a frases publicitárias, cada vez mais vazios de conteúdo político.
Longe vão os tempos — mas é sempre instrutivo lembrá-los — da movimentação popular do PREC, essa sim com verdadeira participação da população operária e popular. Mesmo que, numericamente, fosse uma minoria no conjunto da população do país, era uma força activa que tinha a capacidade de levar consigo muitos outros milhares. Foi isso que permitiu trazer para o terreno da acção prática os interesses e as ambições de quem trabalha — porque, de forma viva e directa, essa minoria era realmente representativa dos interesses e das ambições de amplas massas.
São esses milhares e esses outros milhões que hoje estão remetidos ao silêncio. Metade deles ainda vota. Outra metade não, porque foi despojada de meios de intervir e não espera nada dos seus presumíveis “representantes” ou das instituições que os acolhem.
Comentários dos leitores
•VL 15/12/2021, 18:36
Comentário correto, de evidenciação do caráter profundamente anti-democrático do regime, a que designo de pos-fascista.
Na classe política há dois grupos - o PS/PSD, um género de partido-estado, com duas alas pouco diferenciadas, que detêm o aparelho de Estado e a chave do pote; e, um outro grupo, o BE/PCP, de conservadores, ancorados no dinheiro vindo do OE e que não vão além, politicamente, de uma social-democracia envergonhada
Ninguém coloca em causa o regime; e, muito menos o designam de anti-democrático, resultando daí um afunilamanto em idiotas e falsas referências ao "regime democrático que temos" "é a democracia a funcionar" e balelas estupidificantes afins que 5 horas de ecran por dia, per capita, consolidam. Não se fala do atraso crescente face a Espanha, onde o salário mínimo é de1054 euros contra os 705, depois de elevado em 5 euros pelo magnânimo Costa; não se fala de que o nível educacional é o mais baixo da Europa Ocidental; nem que o patronato tem qualificações inferiores aos dos seus assalariados, coisa única também. No blog grazia.tanta há vários artigos sobre o atraso português, comparações várias, sobretudo com Espanha e os países saídos do Comecon; bem como vários artigos com elementos de desmascaramento do caráter reacionário da Constituição (um pastelão, repleto de vacuidades) que coloca os partidos políticos como os fornecedores de ideias, tomando portanto a plebe, como uma massa de eunucos políticos e culturais
•antonio alvao 18/12/2021, 18:04
As análises estão bem feitas, nada a opor.