O sabre e o aspersório

Manuel Raposo — 23 Novembro 2021

O presidente da República em Fátima com o bispo de Leiria e o comandante da Brigada de Reacção Rápida, à espera do Papa, 2017

Pode dizer-se que a mais velha aliança do mundo é a aliança entre a força militar e o poder religioso — concretamente, no Ocidente católico, a união entre as Forças Armadas e a Igreja. Georges Clemenceau, na sua campanha para separar o Estado da Igreja, em França, no começo do século XX, tê-la-á referido como a santa aliança do sabre e do aspersório. Portugal tem nesse campo uma experiência tão antiga quanto a da sua fundação como país: desde as conquistas territoriais contra o Islão durante quase dois séculos, passando pelas aventuras coloniais e a formação do império com o seu cortejo de barbaridades ao longo de mais de 500 anos, até às guerras coloniais do século XX. 

Hoje, as tropas portuguesas são enviadas para missões internacionais ditas “de paz”, sob bandeiras europeias, da NATO, ou da ONU. Os saques e razias de outrora deram lugar, modernamente, a formas sofisticadas de organização em que preponderam redes mafiosas, igualmente internacionais. E, apesar da separação entre Estado e Igreja, aí estão os capelães militares para abençoarem os soldados e desejar-lhes um regresso a salvo.

Os escândalos que nos últimos anos têm atingido as Forças Armadas num ritmo quase regular, e agora a Igreja Católica, ganham assim um significado muito mais amplo do que o de simples episódios de corrupção, banditismo e perversão avulsos. Eles constituem uma exposição anatómica de órgãos vitais do poder.

É sempre possível montar em torno destes casos um discurso moralista, para fins curativos, em que tudo se resume a “desvios da norma”, a “actos isolados” ou a “tentações pessoais” quando se fala de corruptos e abusadores; e em que se argumenta com “valores intocados” e “prestígio imaculado” quando se referem as instituições atingidas. É a natural tentativa por parte do poder de controlar os danos. Foi o que fizeram o presidente da República, os chefes militares e políticos, ou os padres e bispos católicos perante a eclosão dos escândalos recentes.

Mas os dados objectivos dos casos conhecidos falam por si e desmentem essa moralidade, permitindo tirar uma conclusão diferente daquela que pretende reduzir tudo aos pecados das más rezes do rebanho. 

Os casos recentes relativos às forças armadas e policiais — roubo em Tancos e num armeiro da PSP, com ligações a redes criminosas, sobrefacturação nas messes da Força Aérea, contrabando em missões da ONU, tráfico de drogas por agentes policiais, sem esquecer a morte de instruendos por brutalidades arbitrárias — têm de ser somados, e não isolados uns dos outros, para que se tenha um retrato da situação próximo da realidade. O mesmo com os abusos cometidos pelos padres católicos, de que toda a gente sempre teve fundadas suspeitas ou mesmo conhecimento, mas só agora vão ser investigados (veremos como).

Um reflexo comum, em ambos os casos, tem sido o esforço dos responsáveis hierárquicos, numa primeira reacção, de encobrir os factos ou de desvalorizar a sua importância. Ou então a tentativa de sanar os problemas através de uma espécie de justiça privada que evite a divulgação e a condenação pública. 

É dessa ordem a discursata patética do presidente da República diante de um novo contingente destacado para a República Centro-Africana, dias depois de o escândalo do contrabando de diamantes ter rebentado, dizendo ele que não serão os casos de corrupção a pôr em causa as missões e o “orgulho de Portugal” nas suas tropas. 

É também dessa ordem a “explicação” dada por um tal major-general Begonha, em entrevista à RTP, segundo o qual é a desorganização reinante nos países africanos que provoca “tentações” nos militares portugueses. O resumo publicado pela RTP diz exactamente: “O major-general Rodolfo Begonha explica o tráfico de diamantes levado a cabo por militares portugueses pela natureza das sociedades onde se realizam as intervenções, sem um Estado de direito a funcionar, e também pela facilidade com que as tropas estabelecem ligações com a população local”. Resumo: a culpa é deles, africanos, desorganizados e corruptores.

E é ainda da mesma ordem a recusa empedernida da Igreja Católica em reconhecer os abusos denunciados ao longo de décadas (para não falar de séculos), recusa essa só contrariada há semanas com a constituição, a contra-gosto e por pressão pública, de uma comissão de inquérito.

Isto basta para mostrar que não estamos diante de simples organizações onde surgem prevaricadores, mas sim de instituições que — pela sua natureza fechada, não democrática, sem escrutínio popular, altamente hierarquizadas, com espírito de corpo — fornecem o caldo de cultura para actividades criminosas. E que, sendo altamente poderosas, tendem a abafar os crimes cometidos ou a tratá-los em foro privado. É legítimo perguntar quantos casos não terão sido abafados por cada um que vem a público.

Os crimes em si não são novidade, mas a sua revelação — mesmo esporádica e amaciada pelas prédicas de quem manda — permite ver por dentro o que é o poder instituído, em contraste com a face benigna com que se apresenta. 

Mais que as conclusões de quaisquer comissões de inquérito, o que importa é o justo descrédito, aos olhos da opinião pública, das ideias dominantes sobre o bem comum, a ordem, a igualdade, a justiça de que o Estado e a Igreja se fazem paladinos.


Comentários dos leitores

José Afonso Lourdes 24/11/2021, 5:18

Um visão correcta!
SC
José Afonso Lourdes

Chico 24/11/2021, 14:50

é caso para dizer ao sr.major general Rodolfo que tenha vergonha.

antonio alvao 25/11/2021, 20:45

"A religião aliada à política é uma arma perfeita para escravizar ignorantes" (Júlio C. Melo).

Leonel Lopes Clérigo 26/11/2021, 13:08

Julgo existir hoje certa "inércia" em afirmar que PORTUGAL é um PAÍS SUBDESENVOLVIDO. E em minha opinião, julgo que isto "traduz" o domínio da "mentalidade" pequeno-burguesa do "pobrezinho" que se envergonha de "confessar" que o é. Como dizia a outra senhora "Pobrezinho mas asseadinho..."
Mais recentemente, verifiquei que dois compatriotas meus ganharam "coragem". Um deles, o economista JOÃO COSTA PINTO escreveu no PÚBLICO de 22 de Novembro e com todas as letras, que a nossa economia arrancou no 25 de Abril 74 "com fortes traços de SUBDESENVOLVIMENTO". Só lhe faltou dizer que esse SUBDESENVOLVIMENTO não se alterou até hoje. E aqui para nós, com o "panorama" que se avizinha, não se vai alterar tão cedo.
O outro meu compatriota - mas agora de forma "indirecta" e "subtil" - foi o major-general RODOLFO BEGONHA, como refere no texto acima MR e a propósito do "tráfico dos diamantes". MR resume a "fala" do nosso Major-General do seguinte modo: "a culpa é deles, africanos, desorganizados e corruptores." Ou seja: os portugueses não se metem em "esquemáticos" destes - valha-nos a "Virgem Santa!... - porque a sua "NATUREZA" é de EUROPEU, LOGO de "DESENVOLVIDO". Como é o caso do Senhor RENDEIRO e muitos outros...

Fernando FIRMINO 6/12/2021, 19:34

O envolvimento do nosso País nas intervenções da NATO
não se limita a ser profundamente errado; é, cada vez mais,
um escandaloso atentado à paz e à cooperação entre os Povos
trabalhadores do planeta. Razão sobeja para a firme defesa
da saída imediata de Portugal daquela Organização
imperialista!
Fernando FIRMINO


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