As autárquicas, o OE e a guerra na direita

Manuel Raposo — 16 Outubro 2021

Protesto dos trabalhadores da Galp. 140 despedimentos com o fecho da refinaria de Matosinhos.

A queda da votação no PS nas eleições autárquicas é sinal de que se está a esgotar o caminho estreito que António Costa iniciou em 2015, primeiro com o apoio formal do BE, do PCP e do PEV, depois com os apoios negociados para cada Orçamento do Estado nos anos seguintes. É esta mudança de condições políticas que permite entender não apenas os últimos resultados eleitorais, mas também as ameaças de chumbo do OE por parte da esquerda parlamentar, e ainda a guerra pela liderança que estalou nos maiores partidos da direita.

O fim da estrada

Tal caminho estreito, lembremos, consistiu em levar a cabo pequenas melhorias nas condições de vida das classes trabalhadoras ao mesmo tempo que era mantido o essencial da linha de austeridade imposta pela troika, aquilo que António Costa e os seus ministros das Finanças resumiam e resumem ainda, com insistência, como sendo uma política de “contas certas”.

Estreito, por isto: duas situações significativas permanecem como herança dos tempos de Passos Coelho-Paulo Portas-Vítor Gaspar. Por um lado, a massa dos assalariados não recuperou por inteiro das perdas então infligidas (salários, impostos, apoios sociais); por outro lado, não foram revertidas as leis laborais com que a troika penalizou o trabalho, o que mostra que as vantagens patronais nessa matéria permanecem praticamente intocadas.

O equilíbrio que o Governo conseguiu fazer entre a satisfação de algumas reivindicações elementares e o respeito pelas medidas de austeridade apresentou-se de ano para ano mais precário. O peso da dívida do Estado (que é, entre nós, sobretudo dívida privada que o Estado assumiu como sua) esteve sempre presente como um fantasma em todos os OE e foi um dos maiores factores de condicionamento da política económica.

A linha das “contas certas” significa respeitar escrupulosamente as exigências dos credores externos, colocando a massa dos trabalhadores assalariados a pagar a dívida das empresas privadas. (Tanto devia bastar para ver no Estado não uma instituição “de todos nós”, nem sequer um árbitro, mas o instrumento do capital para socializar as perdas da economia privada.)

Os pequenos alívios praticados desde 2015 — que facilmente contrastavam com a brutalidade da política abertamente anti-trabalhadores do governo PSD/CDS — alimentaram a ilusão de que seria possível levar a cabo um progresso contínuo que beneficiasse o trabalho. PCP e BE contribuíram para essa ilusão ao defenderem uma
marcha de reivindicações passo a passo, que — diziam — levaria não apenas a uma recuperação completas das perdas, como ainda a uma viragem no rumo político do país.

Uma “normalidade” pior para quem está pior

A pandemia, como catalizador que foi de todos os factores negativos da ordem capitalista, e como revelador das suas fraquezas de base, veio abreviar o curso dessa política equilibrista: a quase ruptura dos serviços públicos (particularmente do SNS, da Segurança Social e da Educação) mostrou a escassez de recursos dedicados ao interesse colectivo; o desemprego, mesmo mitigado pelo lay-off, revelou a vulnerabilidade dos direitos do trabalho; o aumento da pobreza evidenciou que milhões de pessoas vivem nos limites da decência; o encerramento das escolas acentuou as desigualdades de classe; etc, etc.

Para lá deste quadro que todos presenciaram, verifica-se que a “retoma da normalidade” deixa para trás os mais prejudicados: a recuperação do emprego, por exemplo, evidencia que são os profissionais com mais formação e mais bem pagos que melhor se safam; e que são os trabalhadores de menos formação e de mais baixos salários que enchem os cadernos do desemprego ou se resignam a aceitar trabalhos mais precários e ainda mais mal pagos. Genericamente, as camadas médio e pequeno-burguesas saem da pandemia a ganhar sobre a massa dos proletários.

Não será de admirar que seja desta massa situada na base da sociedade que venha a fatia maior da abstenção — e o tendencial desgaste eleitoral da esquerda parlamentar.

Um balanço de seis anos

Ao fim de seis anos, um balanço é possível: nem total recuperação das perdas nem mudança de rumo. A política do gota a gota, do “não se pode ganhar tudo num dia”, não surtiu. O apoio que BE e PCP deram ao PS nestes anos perde assim sentido. E mais: aos olhos sobretudo das camadas trabalhadoras mais prejudicadas (pela troika e pela
pandemia) a insistência nessa via torna-os cúmplices de uma política que teve resultados muito limitados e que se afigura sem continuidade possível.

Este apoio ao Governo, ao mesmo tempo, tem empurrado os que ainda votam e os que ainda mantêm a crença no caminho seguido por António Costa para o apoio directo ao PS, identificado como o autor viável dessa política de “austeridade moderada” — tão do agrado das classes médias na medida em que as mantenha um degrau acima da massa proletária.

A prova de que este caminho chegou a um impasse está no facto de ser a promessa dos fundos europeus, consignados ao Plano de Renovação e Resiliência, que alimenta a esperança (propalada por todos os quadrantes, aliás) de uma nova política económica e social, de uma “renovação”… que em mais de quarenta anos não se deu.

A aliança iniciada em 2015 e prosseguida por seis anos, no seu balanço geral, beneficiou em exclusivo o PS, como evidenciam os números das últimas e de anteriores eleições. As perdas eleitorais do BE e do PCP têm de ser radicadas em factos desta ordem, sob pena de se reduzir os ganhos e perdas a uma simples aritmética sem base social ou política.

Debate do OE, espelho da situação política

As discussões acesas sobre o Orçamento do Estado reflectem esta realidade: um PS ainda hegemónico mas debilitado, os seus apoios na esquerda parlamentar enfraquecidos (e desejosos de marcarem distâncias), a viabilidade de uma política de progressão salarial-laboral-social (mesmo gota a gota) comprometida.

As condições de base para uma queda do Governo, por recusa do OE, existem de facto e não são apenas “teatro”, como as múmias e os jovens turcos da direita querem fazer crer. Tal possibilidade só não se verificará pelo receio dos diversos partidos de irem a votos em situação de fraqueza — facto óbvio tanto para esquerda parlamentar como para a direita, menos óbvio para o PS, ainda maioritário, mas certamente apreensivo com o sinal de quebra dado pelas autárquicas.

A guerra na direita

É, em todo o caso, a eventualidade de eleições antecipadas que precipita a luta interna no CDS e no PSD.

A primeira razão é simples e imediata: ambos se vêem, de um lado, muito enfraquecidos face a um PS ainda coeso e com fortes apoios e, de outro lado, acossados pela extrema-direita. A mudança de lideranças é o único caminho que PSD e CDS vêem para tentarem alterar a situação de desvantagem em que se encontram, já que não podem mudar a
conjuntura política em si mesma.

Uma segunda razão chama-se “bazuca”. Os muitos milhões de euros vindos da UE são uma arma política poderosa, agora nas mãos do PS. O governo que gerir a distribuição dessas verbas terá, evidentemente, uma enorme vantagem política sobre os opositores. Em dois aspectos: desde logo, na medida em que consiga assegurar o apoio de um patronato sedento de subsídios e, desse modo, politicamente fidelizado; e depois, na medida em que possa, com umas migalhas de acção social, renovar a ilusão de que a vida de quem trabalha irá mudar. O uso desse fundos pelo governo de António Costa pode pois contribuir para, em termos práticos, reduzir a direita à insignificância política por mais uns anos.

Por todos os motivos, a direita tem pressa em encontrar os líderes com os quais pense ser possível chegar ao poder e chamar a si o maná dos fundos europeus.

Residiu nisso, aliás, o “sucesso”, tão aclamado pela direita, dos governos de Cavaco Silva — fundos que alimentaram a gula do capitalismo nacional, num carrossel de negócios fulgurantes, especulação bolsista, obras públicas de fachada, desvios de fundos, fortunas galopantes, bancos e banqueiros instalados à sombra do poder. Tudo isto sem outro resultado, através dos mais diversos governos, que não fosse o estado em que o país hoje se encontra.


Comentários dos leitores

CarlosM 18/10/2021, 11:34

Estamos perante mais um teatro? Desta vez, não.
Será aprovado o OE? Talvez sim, talvez não.
Se forem convocadas eleições, o PS alcançará a maioria absoluta? Se não tem conseguido, não será desta vez.
E a direita (PSD-CDS-IL-Chega) sairá maioritária? É pouco provável, mas não impossível.
OE aprovado, novo governo PS (minoritário, como conseguirá apoios desta vez?), ou governo de direita: haverá mudanças na receita?

afonsomanuelgoncalves 18/10/2021, 13:13

Como se afirma neste artigo a chamada gerigonça foi um grande falhanço político. Mas julgo que o principal responsável foi o PCP que não soube no momento certo travar a política de direita do PS quando se aliava ao PSD para decretar leis necessárias aos interesses do capital e dos rentistas mais parasitários. Agora os resultados estão à vista de todos e foi pena que este jornal não tivesse entendido isso por não propor ao PC o aviso de uma moção de censura na altura da aliança PS-PSD na aprovaçào das referidas leis. O PC votou contra sem qualquer efeito prático. Bem pode chorar lágrimas de crocodilo, o tempo é outro e o caminho da viragem precisa de outro navio e de outro comandante.

Oavlag 29/10/2021, 21:21

Conclui-se, portanto, que o chumbo foi merecido.
Dentro de poucos meses veremos uma coligação PSD-CDS-IL-Chega repor os direitos adquiridos que os eleitores do PCP e BE tanto almejam...

antonio alvao 12/11/2021, 18:51

O P«C«P se apresentasse uma moção de censura, na hora certa, como defende Manuel Gonçalves - ficaria melhor na fotografia para futuro ato eleitoral...
Os partidos considerados de esquerda B.e PC. fazem todas essas coisas nas costas dos militantes de base, simpatizantes e eventuais eleitores. Poderiam fazer assembleias populares, junto das concelhias, para dar ouvidos a quem sofre na carne as injustiças... Politizar os despolitizados dentro dos possíveis. Porque, um povo que não estuda, não lê, não sabe, não quer saber - para que serve? Exclusivamente só para votar, agitar bandeiras e bater palmas aos seus admiradores políticos. Assim, as decisões políticas do PC, são tomadas entre o parlamento e o Comité Central.
"A sociedade é como um guisado. Se não agitamos de vez em quando, uma camada de escuma fica a flutuar no topo" (Edward Abbey).


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar