Tempestade na Armada, agitação em terra

Urbano de Campos — 8 Outubro 2021

Fazendo voz grossa, Marcelo submeteu-se ao pronunciamento dos almirantes

A barafunda à volta da substituição do Chefe de Estado Maior da Armada teve a curiosidade de ter posto à vista de todos os bastidores do poder e os jogos de força que aí se travam, normalmente na sombra dos gabinetes. Como a polémica estalou (pela mão dos principais intervenientes, sublinhe-se) e não pôde ser escondida, pudemos assistir tanto ao incómodo como ao manobrismo das distintas forças políticas, e até aos mimos com que se tratam quando está em causa uma parcela, pequena que seja, do poder. O caso foi ainda pretexto para um ensaio de doutrina criadora sobre o respeito devido às Forças Armadas, como adiante se verá.

O filme. Do que se sabe, o filme é de argumento singelo. O actual CEMA esteve contra a recente reformulação da lei das FA e dispôs-se a sair do cargo antes mesmo de terminar o mandato. O Governo tinha na calha para o lugar o vice-almirante Gouveia e Melo. O Conselho do Almirantado, porém, pronunciou-se contra esta escolha e manifestou-o ao presidente da República. Embora fazendo voz grossa (“Quem decide sou eu!”), Marcelo submeteu-se ao pronunciamento dos almirantes, travou a substituição e aproveitou para marcar pontos face ao Governo.

Rui Rio. Na espuma levantada pelo caso, há reacções que dão vontade de rir. A do presidente do PSD, por exemplo. Sem nada de sério para dizer, como vem sendo costume, exigiu a demissão de “quem colocou na praça pública” o assunto, sublinhando, para dar ar de imparcialidade, que não sabia absolutamente quem teria sido. Em rigor, pediu a demissão do Conselho do Almirantado e do próprio Marcelo… e declarou que tudo estaria bem se não houvesse conhecimento público do caso.

Marcelo. A aura de árbitro imparcial que o presidente da República gosta de afixar ficou mais uma vez comprometida, tal como quando forçou a demissão da ministra da Administração Interna, na sequência dos fogos de 2017; ou quando denegriu publicamente o actual ministro Eduardo Cabrita, pela questão do SEF; ou quando patrocinou a vacinação de adolescentes na Madeira (em apoio do camarada Albuquerque) contra a posição de então da Direcção Geral da Saúde; ou quando, antes das autárquicas, fez soar que António Costa não se recandidataria em 2023. Ou ainda quando, em tom de analista, sinalizou um raio de esperança para as ambições da direita no rescaldo das eleições da semana passada. A sua pugna por uma direita que se torne governo não tem descanso e não desperdiça nenhuma oportunidade.

A doutrina Barreto. António Barreto — ex-PS, ex-Aliança Democrática, ex-ministro da Agricultura e liquidador da Reforma Agrária, crítico acerbo do Governo — entrou na liça de outro modo: em jeito doutrinário (Público, 2 outubro). Em tom indignado, lamentou “acontecimentos tão danosos para os militares”, verberou “o facto de o Governo querer vergar os militares”, lembrou “os milhares de efectivos a menos” das FA e fez o panegírico próprio destas ocasiões: as missões no estrangeiro desempenhadas “com distinção”, sem esquecer “a disponibilidade, a organização, a disciplina, a prontidão e a eficácia”.

Omitiu, claro, o lado que não lhe convinha: os gastos socialmente inúteis, o parasitismo, a corrupção, a ligação a grupos mafiosos, o crime organizado com implicação das hierarquias (como nos casos de Tancos, das messes da Força Aérea, ou do roubo das pistolas Glock) — ou ainda as violências e os crimes de homicídio praticados sobre instruendos em resultado de brutalidades sem nome trazidas dos hábitos coloniais.

A parte doutrinária da intervenção de Barreto é esta. Segundo ele “a legitimidade das Forças Armadas não se limita à subordinação ao poder civil”. E teoriza: “Tal como na religião, na ciência e na justiça, há, na instituição militar, uma legitimidade própria e autónoma que os políticos têm de respeitar”. Atente-se bem: “uma legitimidade própria e autónoma”. Legitimidade que o poder civil tem de “respeitar”. Estamos longe da ideia da subordinação das FA ao poder civil, estamos longe da ideia de umas FA enquanto braço armado “do povo”, como as classes dominantes sempre as apresentaram. A relação deve ser, nas palavras de Barreto, o exacto contrário.

Nem Salazar foi tão longe — não seguramente por questões de princípio, mas porque temia o putschismo, monárquico ou republicano, entranhado nas FA de então. Barreto, enquanto político, foi criado noutro caldo: o do 25 de Novembro de 75. E por isso, bem vistas as coisas, não espanta que seja ele a fazer tal discurso. O cume da vida política de António Barreto foi o seu papel como ministro da Agricultura depois do golpe da 25 de Novembro. Foi à sombra da “legitimidade” conferida ao novo governo por militares como Eanes ou Jaime Neves que ele pôde desmantelar as cooperativas e as unidades de produção geridas pelos trabalhadores, e devolver as terras a uma classe de proprietários inúteis, a mando dos interesses que a tropa foi chamada a proteger. Nesse sentido, o político Barreto foi um produto da força militar travestida de “legitimidade”.

Convergência. O básico André Ventura, com palavreado irracional, elogia os polícias e os militares junto dos ingénuos e dos iletrados, fazendo-lhes crer que é a falta de força dos de cima que desgraça a vida dos de baixo. O erudito António Barreto, com ambições doutrinárias, cumpre a tarefa junto das elites e das classes médias, demonstrando-lhes que sem a força das armas não são nada. Completam-se.

A esquerda. Teria sido uma oportunidade, achamos nós, de a esquerda parlamentar denunciar sem peias estes jogos e mostrar como se tecem as malhas do poder. Mas não. O BE não se pronunciou, claramente para não queimar os dedos, deixando que o assunto morresse por si.

O PCP foi mais longe. Imiscuiu-se na disputa tomando partido por um dos lados. Fez questão de se mostrar extremoso defensor da “estabilidade” das FA. Exigiu o “cabal esclarecimento” (Jerónimo de Sousa) do episódio e lamentou mesmo o facto de ter sido “criada uma situação preocupante de instabilidade ao nível das chefias militares” (deputado António Filipe).

Este respeito supersticioso pelas “instituições” leva o PCP a esquecer coisas simples que deveriam estar vivas na memória de todos. Uma é que o sistema político em que vivemos foi instaurado por um golpe militar que varreu as esperanças de liberdade e de efectiva intervenção política que animaram os trabalhadores e o povo pobre durante ano e meio. Outra é que as FA não são uma instituição democrática — são as depositárias do monopólio da violência de que as classes dominantes não abrem mão. A “defesa das conquistas de Abril” será uma frase vazia se se esquecer esta realidade.


Comentários dos leitores

Chico 11/10/2021, 11:41

embora não seja necessário, digo: muito bem. Claro, curto e directo


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