Afeganistão. Duas ou três coisas sobre a hipocrisia humanitária

António Louçã — 5 Outubro 2021

Refugiados sírios na Turquia

Com a tomada do poder pelos talibans, milhares de pessoas fogem por bons motivos: mulheres que não querem submeter-se à lei da burka com tudo o que ela implica, jovens que não querem ser formatados com a instrução das madrassas, intelectuais que aspiram a dizer em público aquilo que pensam. Mas os governos ocidentais não têm a menor intenção de acolher essas multidões fugitivas e, quando pensam em ajudar alguém, é apenas a minoria que com eles colaborou durante a ocupação.

A invasão do Iraque causou uma catástrofe humanitária e desencadeou em direcção à Europa uma vaga migratória do Médio Oriente, do Maghreb e mesmo da África subsahariana. Graças a essa invasão, milhares de pessoas se afogam no Mediterrâneo em cada ano que passa. O reflexo da filantrópica União Europeia foi, a este respeito, elucidativo: subornar todos os governos que pudesse na bacia do Mediterrâneo para barrarem o caminho a esse êxodo de dimensões bíblicas.
Se houver no Afeganistão uma catástrofe humanitária, como já começa a desenhar-se, os mesmos governos ocidentais já deram sinais da política que querem adoptar frente às multidões em fuga: impedi-las de deixarem o Afeganistão ou, em último recurso, obrigá-las a fixarem-se em algum país vizinho. Os pobres que acolham os pobres, para os ricos poderem continuar na sua vidinha.
Mas os ricos países da NATO foram os que montaram a invasão e são eles que devem arcar com as consequências. Aprendizes de feiticeiro, aprendam agora também a responsabilizar-se pelo que fizeram. As e os refugiados políticos, sociais e económicos devem gozar de um ilimitado direito de asilo nos países que causaram a catástrofe.
O único ponto em que os governos pirómanos da Europa, dos EUA e da Austrália mostram alguma sensibilidade é quando alguém lhes diz que, entre um povo inteiro abandonado à sua sorte, “estamos” também a abandonar aqueles que estiveram ao “nosso” serviço.
Ora, esses não merecem qualquer privilégio e muitos deles até se encontram agora em pânico por terem crimes de guerra na consciência, dos tais que poderão ser julgados pelos talibans, mas também deveriam ser julgados num eventual país de acolhimento para onde consigam fugir. Os mercenários que traíram o seu próprio povo e se colocaram sob as ordens de potências ocupantes, com o excesso de crueldade que sempre os caracteriza, estão agora a colher o  que semearam.
Nem todos eram tropas especiais, Marcelinos da Mata afegãos com as mãos sujas de sangue? Havia também tradutores, escriturários, enfermeiros? Sem dúvida: muitas vezes tradutores que traduziam os interrogatórios, escriturários que registavam as declarações, enfermeiros que cuidavam de manter vivo o prisioneiro submetido a tortura para poder continuar a ser torturado.
Uma das lendas da história pré-portuguesa pretende que Roma prometeu generosa maquia a um punhado de traidores lusitanos para apunhalarem Viriato durante o sono e que estes foram depois cobrar os trinta dinheiros da sua traição. Mais pretende a lenda que foram recebidos e mandados de volta com a resposta desdenhosa: “Roma não paga a traidores”. Se não é verdade, é bem inventado.

Hoje, a nossa solidariedade com o povo afegão e com os milhares de candidatos ao estatuto de refugiado não deve alimentar o equívoco de reclamarmos, sob uma aparência humanitária, que Roma pague à minoria dos seus serventuários afegãos. Esse é um problema que não nos diz respeito.


Comentários dos leitores

Chico da Emilinha 11/10/2021, 15:49

GRATO

ABRAÇO

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 23/1/2022, 12:05

Obrigada. Abraço.


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