A ilusão do poder local

Editor — 24 Setembro 2021

As autarquias e as eleições autárquicas vivem de uma ilusão: a de que existe um poder local capaz de responder às necessidades das populações e de fazer frente ao poder central. A amostra da presente campanha eleitoral desmente tudo isso. O que está em jogo é a actual hegemonia do PS, a incapacidade do PSD para se lhe opor, a sobrevivência do CDS, a força do BE e do PCP para imporem condições ao Governo, o crescimento da extrema-direita. Tudo questões de âmbito nacional que colocam as autarquias e os eleitos na dependência do peso que cada partido obtiver no conjunto do país.

O que se vai decidir, hoje como ontem, é a capacidade de cada uma das forças partidárias estender a sua influência a todos os recantos do país, e de instalar aí os seus agentes e aí satisfazer as suas clientelas, eleitorais ou outras. O contrário, portanto, de um poder exercido de baixo para cima, como sugere a ideia de autarquia local.

As listas de cidadãos independentes não alteram esta realidade. De facto, acentuam até a ilusão de que as autarquias poderão exercer poder próprio, “independente”, se os cargos não forem ocupados por representantes do poder político, insinuando a ideia ingénua de que “a culpa é dos partidos”. Ora, sendo os partidos expressão de interesses de classe, e sendo impossível eliminar ou iludir esses interesses, é preferível que eles se manifestem às claras em listas partidárias do que através de nebulosas formações ditas apartidárias.

Discutir, dentro deste quadro, a força de intervenção própria de um concelho ou de uma freguesia é tempo perdido. Desde logo, porque a margem de acção local depende de meios, financeiros e técnicos, que são, na sua maioria, atribuídos pelo poder central. Depois, porque nenhuma lista vencedora poderá deixar de ajustar a sua intervenção prática pelas prioridades políticas da corrente a que pertence. Só nos grandes concelhos parte daquele condicionalismo é compensado pelas receitas próprias dos impostos municipais; mas nestes casos o poder exercido localmente não deixa de ser uma extensão do poder de uma ou outra força política.

Nas três centenas de concelhos e nos três milhares de freguesias mandam os poderes de facto: patronato em geral, construção civil em particular, especulação fundiária, imobiliário, turismo… Tirando os serviços públicos essenciais, na maioria dos casos escassamente cumpridos, o papel de câmaras e freguesias é o de dar livre curso aos grandes interesses económicos privados. O controlo dos dirigentes e das políticas autárquicas pelos cidadãos não existe. Daí, o caciquismo, o compadrio, a corrupção.

Evidentemente, em termos imediatos, uma derrota da direita não significa o mesmo que uma vitória da direita — seja no balanço nacional seja localmente. Mas ficar por aí seria fraco consolo.

A existência de um poder local que sirva os trabalhadores e a maioria da população — é essa a primeira questão política que tem de ser colocada — depende da constituição de um poder central, nacional, que seja expressão desses mesmos trabalhadores como classe com interesses próprios. Só assim se assegurará a possibilidade de — a partir de baixo, localmente — acertar planos e partilhar recursos de região para região e no conjunto do país, com a certeza de que tal coordenação serve interesses colectivos e dispõe dos meios indispensáveis à sua realização. A relação entre poder central e poder local, neste caso, não seria de oposição nem de competição, mas de cooperação.

Nenhuma força política existente dá resposta a esta necessidade. A esquerda anticapitalista está, assim, desarmada. As eleições de dia 26 vão apenas confirmar o estado de coisas que dura desde 1976, provavelmente com perto de metade dos eleitores alheados do voto. Nem toda a abstenção significa o mesmo, mas muita dela não deixará de traduzir a convicção de que nada de fundamental mudará nos próximos quatro anos.


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