A omissão da direita na crise ambiental

Urbano de Campos — 22 Setembro 2021

Crise ambiental aponta para os limites do capitalismo como modo de produção e como sistema de organização social

A direita só por arrasto vem à discussão sobre as alterações climáticas e a destruição ambiental. Os mais fiéis representantes do capitalismo pressentem que o assunto toca fundo no mecanismo de produção da riqueza e, consequentemente, no domínio burguês sobre o mundo. Toca na própria economia capitalista — no primado da concorrência e da iniciativa individual sobre o planeamento social, no desperdício e na depredação de recursos que tal implica — e por isso aponta para os limites do capitalismo como modo de produção e como sistema de organização social.

À direita mais extrema não agrada sequer que se façam meias concessões sobre o assunto. Os casos de Trump ou Bolsonaro e da trupe de negacionistas que com eles faz coro são o espelho de um capitalismo que (com razão) se sente posto em causa por não ter solução para os problemas que cria. A tomada de consciência, por largos sectores sociais, dos riscos que o planeta e a humanidade correm se tudo continuar pelo mesmo caminho é boa razão para esse receio.

Perante tais defensores obtusos do deixa-andar, a direita vê-se forçada a encontrar uma via “inteligente” de enfrentar a questão. Mas a tarefa não se mostra fácil.

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU (que retrata uma situação planetária à beira da ruptura) deu origem a um curioso mini-debate no Público entre o director Manuel Carvalho e o cronista Francisco Mendes da Silva, ex-CDS e paladino da “ordem liberal”. MC não vê outro caminho de evitar o desastre senão o de condenar o “egoísmo dos humanos”. Respondeu-lhe FMS com a defesa do egoísmo como modo natural de resolver as questões sociais, porque, segundo ele, o egoísmo faz parte da “natureza humana”. A moralidade de MC não passa disso mesmo, moralidade e estreiteza de vistas. A resposta de FMS tem outro interesse: revela o esforço de resposta “inteligente” da direita (do capitalismo liberal) à crise ambiental e, do mesmo passo, a incapacidade de o conseguir.

FMS acha “um mistério” a ausência da direita do debate ambientalista, quando “lá fora” há um “pensamento conservador” sobre o assunto que busca “articular, conservacionismo, ecologia e ambientalismo”. Mas é precisamente esta quadratura do círculo que coloca a direita à margem do debate: “conservar” a exploração de recursos, a corrida ao lucro, a propriedade privada, a competição entre monopólios — tudo o que constitui a base da ordem capitalista — colide inevitavelmente com as exigências, planetárias e de carácter social, de racionalizar o uso de recursos e manter o equilíbrio ecológico e ambiental.

Deixar o mundo igual ou melhor aos nossos filhos, como FMS desejaria, torna-se assim uma pura utopia, não só num futuro para netos ou bisnetos, mas já hoje. Isso ficou, de resto, bem patente desde que o optimismo progressista dos ideólogos capitalistas deu lugar às políticas de austeridade, desencadeadas com a crise de 2008-2009, com a justificação de não se poder “viver acima das nossas possibilidades” — slogan que significa, na realidade, o trabalho não poder viver acima das necessidades de lucro do capital.

A “falta de comparência” da direita no debate inquieta FMS porque “se vira contra ela”. E porque a esquerda aproveita para “lançar desconfiança sobre os princípios da ordem liberal”, avançando a ideia de “decrescimento económico”, que FMS atribui à “nova esquerda”.

A ideia de decrescimento económico como solução para os males ambientais não tem nada de esquerda no sentido anticapitalista; será, quando muito, a posição mais à esquerda de que o capitalismo será capaz diante do problema. Ela é, na verdade, uma noção que permanece presa da lógica capitalista de produção, para a qual a única maneira de reduzir os efeitos extremos da degradação ambiental é eliminar uma parte da produção “em excesso” — mas sem tocar nas relações sociais de produção que estão na origem do problema.

Por isso FMS diz que o abrandamento económico seria uma “aventura devastadora” sobretudo para os pobres, ocasionando uma radicalização dos sistemas políticos e uma “restrição das liberdades incompatível com a democracia” (leia-se fascização). Na sua ideia, nada da ordem social mudaria com tal abrandamento — a não ser dar menos aos que já têm menos, tanto no plano material como no plano dos direitos.

Ainda que haja excesso de produção crónica em muitos sectores (e essa é uma das origens da interminável crise das últimas décadas e um sinal da senilidade do sistema capitalista), esse excesso refere-se sempre, na lógica do capital, à capacidade global de aquisição da população — não necessariamente ao excesso absoluto de bens de que a população do planeta precisa. Para o capital, excesso é o que não se vende; por isso o remédio de sempre para o excesso de produção é eliminar concorrentes e destruir meios de produção.

Ora, só um planeamento das necessidades sociais poderá dar a medida certa das necessidades de produção, coisa que a “ordem liberal” tão cara a FMS não é capaz de fazer.

Uma lógica socialista aponta justamente neste sentido: a produção de bens (de toda  espécie) deverá ser feita em função das necessidades sociais (todas elas), desse modo ajustando toda a produção a um equilíbrio entre as exigências humanas e as exigências de preservação de recursos, à escala mundial. Este é o único processo de pôr fim à depredação que a competição movida pelo lucro máximo acarreta. É o que está contido na ideia de Karl Marx de construir um novo metabolismo social que coloque em novas bases o intercâmbio entre os seres humanos e a natureza — só que esse novo metabolismo pressupõe a eliminação do capitalismo como modo social de produção.

O facto de FMS se insurgir contra ideias tão fúteis como a condenação “do egoísmo humano” ou o “decrescimento económico” mostra o receio do capitalismo liberal diante de tudo o que pareça pôr em causa os equilíbrios hoje estabelecidos. Nisso, aproxima-se dos receios que assombram os negacionistas, apenas uns passos atrás.

As soluções que FMS tenta avançar, na tentativa de trazer a direita a terreiro, soam todas, sem surpresa, a vazio. Diz ele que não é preciso travar o crescimento mas sim “reorientá-lo” segundo “novos pressupostos de sustentabilidade”, como sejam as energias renováveis. Mas o que a realidade mostra — veja-se o já referido relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas — é que, por muita tecnologia nova que se empregue, o problema não mostra sinais de solução, como os apelos desesperados de António Guterres revelam.

A razão disto está, uma vez mais, no facto de nada ter mudado nas relações de competição que o capitalismo estabelece dentro de cada país e mundialmente, nem na corrida aos recursos naturais, nem, por conseguinte, nas relações sociais e políticas que sustentam o crescimento. A “ordem liberal” cara a FMS só vê uma via para responder ao problema: a do negócio. Nas suas palavras, a solução será entusiasmar “o investimento privado de pessoas que apostaram no negócio das energias limpas para ganhar dinheiro”. Ganhar dinheiro: a isto chama ele ”a criatividade natural do ser humano”.

A direita liberal limita-se, com isto, a repetir a crença na concorrência para resolver as contradições geradas pela anarquia capitalista. Os mais de 260 anos decorridos desde que Adam Smith defendeu a “mão invisível” do mercado como regulador das contradições geradas pela iniciativa privada (na economia e na sociedade) mostram que o interesse privado — de indivíduos, de países ou de potências em concorrência — está longe de ser canalizado, como ele acreditava, para “fins sociais desejáveis”. Ao contrário, a extrema degradação a que o planeta chegou é o fruto desses duzentos e tal anos de rédea solta. Não é com mais do mesmo que o problema se resolve.


Comentários dos leitores

Oavlag 30/9/2021, 22:13

Nos países que são democracias, não haverá transição climática, porque ela significa tirar aos cidadãos os maiores benefícios da civilização: o automóvel privado, a climatização de veículos e edifícios, e muitos outros. São direitos adquiridos.

Há medidas muito simples que conduzem à diminuição dos gases de efeito de estufa. Simples, baratos e fáceis de implementar, que não têm sido tomadas por beliscarem ao de leve os direitos adquiridos dos cidadãos eleitores que deles beneficiam:

. Obrigar a que as coberturas dos edifícios sejam placas solares de captação de calor e eletricidade.
. Obrigar os automóveis a ficarem na periferia das cidades. Daí para o centro, haver transportes coletivos grátis, de preferência elétricos.
. Fazer uma rede de água não potável alimentada pelos efluentes das habitações dos lavatórios e chuveiros dos WC. Água para rega de jardins, lavagem de carros, etc.
. Passagem para o dobro do imposto sobre combustíveis sólidos, para financiar a energia limpa e para facilitar a transição para veículos elétricos.
. Limitação da temperatura ambiente; não mais de 17 graus centígrados no inverno, não menos de 24 graus centígrados no verão.

Se estas medidas começarem a ser implementadas e se ao mesmo tempo as pessoas não votem em massa no Chega, começo a acreditar que pode haver mudança climática...


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