A crise no Magrebe. Mão estrangeira e males próprios

Manuel Raposo — 10 Setembro 2021

Manifestação em Argel. Fevereiro de 2011

O corte de relações diplomáticas, em final de agosto, entre a Argélia e Marrocos inquietou a Europa — particularmente, Espanha e Portugal — não tanto pelo conflito em si, mas por poder causar problemas ao fornecimento de gás natural vindo da Argélia, uma vez que um dos principais gasodutos atravessa território marroquino. Sossegados os espíritos com a garantia da Argélia de que o abastecimento não terá quebras, é natural que o assunto seja ignorado pelos meios de comunicação e as suas razões políticas reduzidas a mais uma briga entre árabes “que não se entendem”.

A Europa e os EUA, todavia, não estão de fora dos acontecimentos. Como lembra um artigo, bem recheado de informação útil, publicado pela Associação de Amizade Portugal Sahara Ocidental, a mão de ambos e mais a de Israel têm de ser colocadas na equação.

Velhos e novos colonos

Nunca a Europa tratou de se relacionar com qualquer um dos países, Marrocos e Argélia, de igual para igual. A sua postura foi sempre a da velha potência colonial que move influências e fomenta divisões na busca de ganhar vantagens.

A própria forma como chegaram à independência cavou um fosso político entre Marrocos e Argélia. Aquele, em 1956, por outorga dos colonizadores espanhóis e franceses, que instalaram no poder uma monarquia “aliada” reaccionária, muito conveniente para contrabalançar as ambições independentistas da Argélia. Esta, por meio de uma guerra de libertação de extrema violência, iniciada em 1954, que, ao fim de oito anos, instaurou uma república, correu com os colonizadores franceses e deu alento e apoio prático aos movimentos de libertação africanos — e cujas ondas de choque abalaram, inclusive, o próprio regime francês.

A posição acerca do Saara Ocidental, ocupado por Marrocos, como se sabe, é um daqueles factores de divisão: contra as resoluções das Nações Unidas, que a Argélia respeita, a França apoia Marrocos nesse seu acto colonial. Recentemente, juntando-se à França, os EUA reconheceram a ocupação do Saara Ocidental a troco do estabelecimento de relações diplomáticas de Marrocos com Israel, o que se tornou em mais um factor de conflito na região e entre o mundo árabe-muçulmano — tanto mais que a atitude de Marrocos significa o abandono da causa palestina.

Com as costas quentes, Marrocos deu por consumada a ocupação do Saara Ocidental, o que levou a Frente Polisário, com o apoio político da Argélia, a recomeçar as operações militares contra as tropas marroquinas. Num acto de retaliação, Marrocos declarou apoio aos separatistas da Cabília (norte da Argélia). Mas, enquanto o apoio argelino aos sarauis corresponde a um reconhecimento do direito de autodeterminação, sancionado pela ONU, de um povo ocupado colonialmente — o contra-ataque marroquino é, à luz dos mesmos preceitos da ONU, uma pura ingerência nos assuntos internos argelinos.

Um efeito imediato da aproximação entre Marrocos e Israel foi a colaboração entre ambos em actos de espionagem. Israel forneceu a Marrocos o seu programa de espionagem Pegasus que Marrocos usou para seguir os passos de altos funcionários argelinos, entre outros o ministro dos Negócios Estrangeiros e o Chefe do Estado-Maior do Exército.

Estes factos fazem crer que Marrocos não só estará escudado nos apoios políticos e diplomáticos que a França e os EUA lhe conferem, como ainda contará com uma eventual colaboração de Israel nos planos militar e de espionagem.

‘Primavera’ adiada

Tudo isto decorre sobre um fundo de crise económica e social — agravada pelos efeitos da pandemia — com fortes repercussões políticas, em ambos os países.

As recentes eleições gerais em Marrocos dão conta disso mesmo. O partido do poder, a governar há dez anos, sofreu uma derrota estrondosa que o fez cair de uma maioria de   125 deputados para um irrelevante oitavo lugar com 13 deputados. Em todo o caso, nada de essencial irá previsivelmente mudar, uma vez que a oposição vencedora se situa igualmente no campo da direita e da monarquia. Mas tamanha reviravolta no eleitorado é certamente sinal de uma instabilidade social persistente que não deixará de se manifestar mais tarde ou mais cedo exigindo mudanças efectivas.

Na Argélia, as grandes manifestações de massas iniciadas em 2019 depuseram o presidente Bouteflika, que tentava eternizar-se no poder. Mas a mudança de figuras não alterou nem o regime, muito dependente do papel dos militares, nem as condições de vida da população. O país continua sem resolver os seus problemas económicos de base, fortemente agravados com a quebra do preço do petróleo, que representa 95% das suas receitas de exportação e 60% das receitas orçamentais. Perante este marasmo, as manifestações de 2019, que a pandemia interrompeu, voltaram às ruas.

Se incluirmos nesta reflexão o caso da Tunísia, em agitação social e política desde o início deste ano — e também ela num quadro de quebra económica significativa — não será preciso ser adivinho para prever que novas convulsões sociais irão abalar estes (e possivelmente outros) países do norte de África.

Contra o que querem fazer crer os caluniadores da agitação social, as Primaveras Árabes de 2011 — mesmo se os resultados práticos não corresponderam ao impulso popular — tiveram o condão de revelar problemas profundos do mundo árabe que precisam de resposta urgente. Tal resposta, como os acontecimentos de então evidenciaram, só pode ser uma resposta social, de massas. E como de então para cá as mudanças foram nulas e os mesmos problemas persistem, novas ‘primaveras’ (ou verões quentes) terão de emergir.

Surpreendentemente, as reivindicações então levantadas estavam paredes-meias com as exigência de muitos povos da Europa, sobretudo os do Sul, castigados com as políticas de austeridade: melhoria de vida, emprego, trabalho com direitos, combate à corrupção, direitos iguais para as mulheres, democracia verdadeira, condenação do monopólio partidário das classes dominantes, rejeição dos regimes políticos. Isto aponta para uma afinidade, maior do que se poderia suspeitar, entre os interesses dos povos da Europa do Sul e do Norte de África — e explica, por isso mesmo, o receio das burguesias europeias perante a agitação social do lado de lá do Mediterrâneo.

 


Comentários dos leitores

Luis Reis 14/9/2021, 17:51

Boa tarde, artigo interessante. Uma clarificação somente.
De facto, a França não reconheceu,até à data e à semelhança dos EUA, a integração do Sahara Ocidental em Marrocos, apesar de ser um um dos mais importantes apoios ao Reino em causa
Cumprimentos
Luís Reis

mraposo 16/9/2021, 12:00

Tem razão, Luís Reis. Neste texto, parece que França e EUA têm a mesma posição. A atitude da França, na verdade, é de apoio a Marrocos, como era dito em artigo anterior sobre o assunto, mas não de reconhecimento explícito da ocupação do Saara Ocidental. Era essa também a posição dos EUA antes de Trump entrar em cena.
A diferença, porém, se conta do ponto de vista do formalismo diplomático, conta pouco do ponto de vista político, uma vez que, como diz, o apoio da França a Marrocos é um dos mais importantes — permitindo a Marrocos eternizar a ocupação e, na prática, anular o referendo sobre autodeterminação decidido pela ONU. Este jogo da França (e também o da UE) é uma maneira cínica de lidar com o problema, evitando, nomeadamente, entrar em choque frontal com a Argélia. Mas, com a intromissão dos EUA e de Israel da maneira que se vê, parece-me que essas meias-tintas se tornam insustentáveis, tanto para a França como para a UE, uma vez que o conflito Marrocos-Polisário-Argélia, até agora mantido em surdina, corre o risco de se extremar.
(Um relatório da Assembleia parlamentar do Conselho da Europa, de 2004, permite ver os contornos do problema e as posições dos principais intervenientes.)


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