Afeganistão, NATO, UE, Portugal

Urbano de Campos — 31 Agosto 2021

Vinte anos de ocupação militar. Metade das crianças afegãs sofrem de subnutrição severa (UNICEF)

Uma cena caricata decorreu há dias (27 de agosto) no aeroporto de Figo Maduro, à chegada dos militares portugueses que estiveram em Cabul para ajudar a retirar refugiados afegãos colaboradores das forças da NATO. O “destacamento”, integrado no contingente espanhol, era composto por quatro militares que foram enviados ao Afeganistão por 72 horas e que trouxeram consigo 24 afegãos, famílias incluídas. A recebê-los, o ministro da Defesa e o presidente da República com os discursos vazios que se ouvem sempre nestas ocasiões.

O propósito óbvio da encenação, a que a comunicação social prestou honras de acontecimento, foi dar grandeza a uma missão em si mesma insignificante e, mais largamente, justificar a participação numa guerra de agressão que acabou de forma enxovalhante, depois de ter causado nada mais do que destruição no Afeganistão e gastos socialmente inúteis ao erário público português.

(Seria interessante saber quanto custaram os quase vinte anos de “missão” portuguesa — se possível, numa óptica de custo-benefício, tão do agrado dos homens do poder quando se trata de segurança social, de saúde ou de ensino público…)

Do “sucesso” ao descalabro em poucos dias

Em maio deste ano, quando a retirada começou e o contingente português regressou sem sobressaltos, o ministro da Defesa estava tão seguro do êxito da campanha que aproveitou para anunciar uma nova missão que a NATO estaria a delinear para o Afeganistão, da qual daria pormenores quando estivesse definida, e na qual Portugal voltaria a estar empenhado.

Nos últimos dias, porém, e com o descalabro à vista de todos, o ministro teve de mudar de discurso. Disse ele que, nas próximas semanas e meses (passada a confusão da retirada), a “comunidade internacional” e a NATO teriam de “reflectir profundamente” sobre “a forma de trabalhar” nos últimos vinte anos.

Pôr o foco sobre “a forma de trabalhar” foi um modo airoso que o ministro encontrou para evitar a questão de  fundo: o papel de joguetes dos EUA que Portugal e a maioria dos membros da NATO e da UE têm desempenhado. Todos eles são aliados das aventuras imperialistas por vontade e por interesse próprios, mas isso não impede que sejam por vezes os idiotas úteis que as ambições hegemónicas dos EUA levam à trela.

Isso viu-se, de novo, desde que os EUA decidiram retirar-se do Afeganistão. As autoridades norte-americanas nem sequer informaram completamente os aliados sobre os termos do acordo assinado com os talibãs, em final de fevereiro de 2020, em Doha. E, mais recentemente, voltaram a guardar segredo sobre o entendimento estabelecido, já em Cabul, entre o director da CIA e o líder talibã, a 24 de agosto. “Só aos poucos vamos sabendo coisas”, afirmou à SIC o major-general Carlos Branco, membro do Instituto Português de Relações Internacionais e ex-porta-voz da NATO no Afeganistão.

A NATO em causa

O que em todo este circo está em causa é, em primeiro lugar, a colaboração prestada por Portugal e pelos europeus aos desígnios dos EUA — no Iraque ou no Afeganistão, mas também no Leste europeu ou na África Oriental e Central, regiões em que Portugal participa alegremente, sem voz activa, em missões militares ditadas pelos EUA ou pela NATO. Ainda há dias, a 19 de agosto, a fragata Corte-Real partiu, com os encómios do ministro da Defesa, para o Mar Báltico em missão da NATO, onde o alvo é montar cerco militar à Rússia. Virá o ministro da Defesa, daqui a uns meses, propor nova “reflexão” sobre estes casos?

Em segundo lugar, está em causa, precisamente, a pertença de Portugal à NATO e a própria existência duma aliança guerreira que estende tentáculos e arma conflitos onde e quando os EUA entendem.

UE com planos próprios?

A realidade da derrota no Afeganistão e a desorientação que se apoderou de todos os responsáveis militares e políticos, europeus e norte-americanos, mostram que o declínio da hegemonia dos EUA é terreno fértil para novos desaires semelhantes, arrastando consigo aliados e colaboradores. A retirada norte-americana, com toda a sua precipitação e jogo escondido, tem para os europeus um travo de traição.

A “reflexão” que o ministro da Defesa propôs, não sendo seguramente de sua exclusiva lavra, tem de ser vista também por este ângulo. Ela faz eco das preocupações que afligem os membros europeus da NATO diante do descrédito que atinge, em primeiro lugar, os EUA, mas que salpica por igual os seus seguidores. Inevitavelmente, há-de pôr-se aos dirigentes europeus a questão de saber até que ponto os EUA são confiáveis. Esta dúvida, que começou por se colocar com Trump, coloca-se também com Biden — mostrando que o problema não tem a ver com os desvarios de Trump.

É de admitir que, neste pântano, as principais potências europeias tirem da gaveta os seus planos de longa data de dotarem a UE de uma força militar própria que, como se ouve comentar, seja o braço armado de uma política externa própria. Política externa própria, esclareça-se, à medida das ambições imperialistas da UE.

Mesmo tema, nova actualidade

No que a Portugal diz respeito, não serão seguramente o presidente da República, o ministro da Defesa ou o Governo a contestar as imposições norte-americanas ou o papel da NATO no mundo, ou sequer a questionar a participação portuguesa na Aliança e nas suas missões. Também não serão eles a questionar os sonhos militaristas que a UE queira pôr em prática.

A sua preocupação de sempre é apagar a memória de maus momentos como o actual e recompor, aos olhos da população, a imagem das instituições militares como agentes da ordem nacional e mundial — passando por cima dos milhares de mortos e dos milhões de euros que tal ordem custa. Foi o que a encenação de Figo Maduro pretendeu à escala portuguesa.

A oposição aos propósitos belicistas de norte-americanos ou de europeus é assim tarefa que recai, em exclusivo, na formação duma opinião pública crítica e numa intervenção pública activa. No quadro que está criado, ganha nova actualidade a exigência, de há muito levantada, de pôr fim à NATO, em paralelo com a denúncia do militarismo da UE.


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