Para lá da cortina de fumo

Editor — 19 Agosto 2021

Uma barragem de propaganda, nos limites do ridículo, acompanha as notícias sobre o Afeganistão. Os motes são fáceis de identificar: a sorte das mulheres (“e raparigas”, como disse o cuidadoso Guterres), a violência sobre os colaboradores do regime deposto, o perigo de um novo santuário de terrorismo internacional, o risco de mais uma maré de refugiados sobre a Europa. Em vago, tudo é possível — mas, em concreto, nenhum sinal aponta nesse sentido. Pelo contrário, os testemunhos vindos de quem avalia a situação no próprio terreno, sem ter propósitos de servir a agenda ideológica do Ocidente, mostram mesmo surpresa por tamanha mudança se passar em tão boa ordem.

Declarações dos líderes Talibãs de que não haverá vinganças, a manutenção em funcionamento dos organismos e dos funcionários do Estado nas províncias conquistadas, a garantia dada de que o Afeganistão não apoiará grupos terroristas, as negociações mediadas por um antigo presidente afegão para estabelecer os termos da transição de poder — nada disto é tido em conta e é desvalorizado como simples jogada dos Talibãs.

Todo este alarme ultrapassa em muito a simples cautela. Destina-se a criar na opinião pública ocidental uma aversão, de partida, contra o novo regime, antes mesmo de ele ter dado passos concretos, aversão essa que justifique toda a pressão — diplomática, militar, de cerco económico — que os EUA, com a UE atrelada e a NATO em ponta de lança, se preparam para exercer sobre o Afeganistão.

Nesta manobra, o Afeganistão e o regime dos Talibãs são, contudo, apenas um alvo intermédio. O real objectivo dos EUA é prosseguir, agora forçosamente por outros meios, a sua guerra fria global contra a China e a Rússia — e, regionalmente, contra a afirmação do Irão como potência deles aliada.

E aqui tocamos o centro do problema que a barragem de propaganda procura manter afastado da consciência do público. E que é este:

A campanha militar, política, diplomática levada a cabo durante vinte anos no Afeganistão pelos EUA e seus acólitos fracassou estrondosamente;

A derrota foi de tal modo sonora que os dirigentes norte-americanos se sentiram na necessidade de inventarem à pressa uma versão mínima dos objectivos militares dos EUA (apenas eliminar a Al Caida) para darem a missão por cumprida e justificarem a retirada desordenada — culpando, de caminho, os líderes afegãos depostos (até ontem seus mandatários) de se recusarem a combater;

Por muitas incertezas que os afegãos possam ter acerca do que virá a ser o regime dos Talibãs, não lhes restam quaisquer dúvidas sobre o que foi o regime imposto pelos ocupantes e seus fantoches, o que diz tudo sobre a natureza da ocupação;

Nenhuma democracia foi estabelecida no Afeganistão, nenhum progresso material ou social foi posto em prática, a “superioridade civilizacional” do Ocidente teve como única expressão o poderio militar e a capacidade de corromper as elites locais;

A expulsão dos ocupantes, feita a toque de caixa, significa a libertação nacional do Afeganistão e um golpe no domínio imperialista sobre a Ásia Central;

Pese embora a natureza reaccionária do ideário Talibã, abre-se a possibilidade de um desenvolvimento independente do país, livre da dominação imperialista, tanto pelas relações que o país terá de estabelecer com os vizinhos para a reconstrução, como pela exigência que as massas populares porão sobre o novo regime no sentido do progresso social;

Longe de ficar isolado e fechado sobre si próprio, como agoiram os dirigentes norte-americanos, o Afeganistão pode hoje estabelecer laços com um conjunto de países que lhe proporcionem as condições de desenvolvimento que a ocupação militar e a guerra civil bloquearam.

No final de contas, tudo saiu furado ao imperialismo. Ao invés de terem criado, como pretendiam os seus brilhantes estrategas, um posto avançado na Ásia para garantir a sua hegemonia global — e, concretamente, limitarem a influência da China e da Rússia — os EUA enredaram-se numa teia que os manietou; e que acabou, vinte anos volvidos, por favorecer a expansão económica e política da China, da Rússia e do Irão, precisamente o contrário do que pretendiam.

Quando os mais elaborados planos políticos de uma potência resultam no seu contrário, isso quer dizer que os ventos da História deixaram de a favorecer. O declínio dos EUA e do imperialismo ocidental tornou-se irreversível. As consequências disso são de grande monta. Um mundo transfigurado está em gestação — diferente daquele que foi moldado pela Segunda Guerra Mundial e que teve o seu ápice na expansão imperialista dos anos 1990-2000. Nesta volta da História, abre-se campo para um novo ciclo de revoluções sociais: umas, ainda de natureza nacionalista e burguesa, como nos casos do Irão e do Afeganistão; outras que hão-de ter carácter marcadamente socialista.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalvess 20/8/2021, 12:42

Os EUÁ e a UE ainda não digiriram a surpreendente expulsão que sofreram no Afeganistão e apanhados de surpresa vociferam os mais descabidos e arripiantes discursos que as imagens televisivas não conseguem fazer corresponder mas o descaramento dos comentadores, jornalistas, políticos, professores e especialistas bem tentam convencer os cidadãos da Europa civilizada e livre das ameaças que os espera se nada for feito a tempo e horas. No entanto é provável que os tempos que se aproximam tragam novidades inesperadas só que o socialismo, propriamente, não está na ordem do dia. As condições objectivas e subjectivas dessa possibilidade foram destruidas a partir da 2^ metade do sec. XX e agora há que esperar que os ventos da História e a astúcia da razão renasçam das cinzas.

Leonel Lopes Clérigo 21/8/2021, 11:30

No seu comentário acima, Afonso Gonçalves disse quase tudo.
E se ele me permite, acrescento um "velho" e pequeno texto de Marx bem curioso e com os desejos de "boa digestão".
Contudo não posso deixar de notar como foi possível a alguém fazer um "retrato" lúcido do futuro...em 1850. Podemos aprender se pusermos no lixo as "tretas" manhosas dos "COMENTADORES" (encartados) de que fala Afonso Gonçalves.

https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/02/deslocamento.htm
Deslocamentos do Centro de Gravidade Mundial
Karl Marx
Fevereiro 1850


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