Tanta casa e tanta falta de casa

Urbano de Campos (com D.R.) — 7 Agosto 2021

Trabalhadores imigrantes: explorados da forma mais crua e tratados como indesejáveis

Estudo recente de uma seguradora britânica coloca Lisboa como a segunda mais barata cidade da Europa ocidental para comprar casa. Melhor que Lisboa só Bruxelas. Em termos médios, o custo de um apartamento em Lisboa fica por 227.750 euros, cerca de 4.500 euros por metro quadrado. Estes valores só por si dizem pouco, mas já dizem mais quando se entra em conta com dois outros factores: o custo médio de vida e o salário líquido por mês. O estudo permite ver que, entrando com estes dados, Lisboa se torna, para os portugueses, a mais cara do ranking das 15 cidades analisadas.

De facto, o custo de vida médio em Lisboa é avaliado em 1048€/mês/pessoa e o salário líquido em 848€/mês/pessoa — o único caso das cidades tomadas em conta em que o salário é mais baixo que o custo de vida. Ou seja, aos lisboetas faltam sempre 200€ para completar o mês.

A relação entre o salário líquido e o custo médio das casas é, em Lisboa, de 1 para 268. Para o caso de Paris, a cidade que o estudo aponta como a que tem casas mais caras (620.800€), esta relação é de 1 para 216, sendo que neste caso o custo de vida é de 1762€ e o salário líquido é de 2870€ — sobrando assim aos parisienses 1.108€ em cada mês. E no caso de Bruxelas, colocada no outro extremo da lista, o valor das casas é de 221.000€, o que dá uma relação de 1 para 105, com um custo de vida de 1255€ e um salário líquido de 2105€ — sobrando aos bruxelenses 850€ por mês.

Não admira portanto que, ainda segundo o estudo, os créditos à habitação em Lisboa se prolonguem, em média por 58 anos, o valor mais alto dos casos analisados. Em Paris e Bruxelas esse prazo é de 54 e 23 anos, respectivamente.

Considere-se que estes valores, sendo médios, não dão conta das disparidades existentes de classe para classe social, revelando apenas aquilo a que as camadas com rendimentos médios ou médio-altos podem aceder. Mesmo assim, há algumas deduções possíveis.

A classe média estrangeira que o Governo e as empresas imobiliárias pretendem cativar (com facilidades fiscais e outros atractivos) vem para Portugal gozar duplamente do baixo custo das casas e do baixo custo de vida, quando comparados com os mesmos valores nos seus países de origem. Os portugueses, por seu lado, não só são prejudicados, à partida, pelo baixo nível salarial, como ainda sofrem as consequências da inflação dos preços (das casas e dos bens de consumo em geral) causada pela procura vinda do estrangeiro, com um poder de compra muito superior.

A expulsão das populações (na maioria proletárias) dos centros urbanos das grandes cidades do país, com relevo para Lisboa e Porto, teve considerável aceleração com o afluxo do turismo e com o aumento daquela imigração com elevado poder de compra. É ao serviço deste processo de verdadeira limpeza social que os governos das grandes câmaras municipais se colocam sem reservas — procurando apenas silenciar os protestos das vítimas com escassos programas de “renovação” ou de “realojamento” habitacional, sempre na cola dos interesses privados.

Essa imigração endinheirada (sazonal ou permanente), que potencia todo o tipo de negócios especulativos, beneficia das maiores facilidades para se estabelecer: seja isenção de impostos, seja autorização de residência. O argumento das autoridades e dos homens de negócios é que essa política de portas abertas faz entrar no país milhões de euros, como se de uma indústria de exportação se tratasse. Mas o facto é que esses milhões alimentam, quase exclusivamente, o circuito que começa na banca e na especulação fundiária, passando pelas empresas imobiliárias, pela construção civil e pelo endividamento das famílias e retornando com juros à banca — precisamente o mesmo ciclo de negócio que redundou na crise financeira de 2008.

A “dinamização económica” que tal mecanismo proporciona não se repercute, contra o que é sugerido, numa melhoria geral das condições de vida da população. E, em contrapartida, como acima se disse, gera uma subida de preços especulativa que coloca a maioria dos trabalhadores longe de poderem ter casa condigna.

(Se outras provas fossem precisas, bastaria atentar na situação crítica dos milhares de famílias que estão a braços com o pagamento das rendas de casa e das despesas de energia e água, agora que as moratórias ditadas pela pandemia chegam ao termo. Só no que respeita à electricidade, dados recentes revelaram que 240 mil famílias e 50 mil empresas, na maioria pequenas, estão a pagar a prestações as dívidas à EDP.)

Ainda para mais, os empregos que aquela “indústria” cria são, regra geral, precários e mal pagos — preenchidos por essa outra imigração que não tem portas abertas, nem acesso a documentos, nem vistos de residência, e que vive, a maior parte dela, em bairros de lata, em quartos superlotados ou em contentores de obras. E que, ao mesmo tempo que é explorada da forma mais crua, é tratada como indesejável.

Os neo-fascistas (e a direita com eles) que bramam contra a imigração constituída por trabalhadores pobres e se fazem arautos dos “valores nacionais”, adoptam, a respeito da imigração das classes médias europeias, um servilismo de mão estendida que revela a sua posição de classe. A coacção exercida sobre os imigrantes pobres destina-se a mantê-los em condições de trabalho precário, e portanto barato, precisamente para que os custos da construção sejam baixos e a oferta continue “atractiva” para os compradores endinheirados, indígenas ou vindos de fora.

As excelências para o investimento imobiliário que a seguradora britânica promoveu junto dos seus clientes são conseguidas à custa desta cadeia de miséria.


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