Falta de vocações

Editor — 11 Julho 2021

A igreja católica queixa-se desde há décadas de “falta de vocações”: os seminários estão vazios, não há padres para as paróquias, as igrejas ficam às moscas. Não é difícil ver nisto um sinal dos tempos: a crença religiosa, remetida para o domínio íntimo de cada pessoa, não é vista como tendo qualquer papel na gestão da vida colectiva — papel este que todos os cidadãos atribuem aos poderes públicos. Mas eis que são agora os partidos políticos que se queixam de “falta de vocações” para o exercício desses poderes públicos.

O mal atinge sobretudo a direita. Para já. Tanto o CDS como o PSD, na rampa de lançamento para as próximas autárquicas, lamentaram em várias ocasiões que militantes e simpatizantes seus não se mostrassem disponíveis para integrar as listas de candidatos. As queixas, feitas por diversos dirigentes, tinham mesmo o ar de séria censura a esse virar de costas ao que se convencionou chamar “dever cívico”.

Nem mesmo as setenta e tal coligações negociadas entre PSD e CDS e juntando o rebotalho da direita — necessárias a todos eles para ver se tiram o pé do lodo — parecem animar as hostes. Não só várias recusas liminares de figuras de proa como também ruidosas deserções de última hora enfraqueceram as ambições das listas anunciadas ou mesmo já lançadas.

As tentativas de resposta ao desconchavo vão desde a estafada promessa de “aproximar a política dos cidadãos” — tão virtuosa como os apelos do Papa ou das Miss Mundo à paz universal — até à proposta, bem mais sonora, de aumentar os vencimentos dos autarcas, no intuito de espevitar-lhes o “sentido cívico”.

O problema, como é óbvio, vem de mais fundo. Neste momento, é a direita que pena por arranjar candidatos porque — afastada do governo e não tendo perspectivas de lá chegar proximamente — não pode garantir lugares à mesa do orçamento a ninguém. Mas, para lá desta situação de circunstância, assistimos desde há décadas a uma degradação progressiva da avaliação que os cidadãos fazem da política dominante, das instituições e dos figurantes que ocupam cargos em qualquer nível do poder. E este descrédito vai afectando, mesmo em graus e em tempos diversos, todo o espectro partidário.

A distância que separa a população das instituições e dos eleitos tem expressão na colossal abstenção nos actos eleitorais. Isto espelha a noção comum, certeira, de que o ritual periódico das eleições não muda nada do que importa mudar, nem no plano nacional nem no plano local. Não admira que governantes e autarcas sejam cada vez mais ignorados, ou criticados, ou mesmo hostilizados pelos cidadãos e que o campo de recrutamento se restrinja — a ponto de Luis Filipe Menezes, ex-presidente do PSD, ter dito em entrevista recente: “Tornou-se um exercício arriscado, a tocar a loucura, ocupar cargos públicos em Portugal”.

Tudo isto é sinal, não de meros “defeitos” que estejam à espera de ser corrigidos por uma cabeça esclarecida, mas da decadência do actual sistema de representação democrática. O sistema democrático instalado — na medida em que expressa o poder monopolizado de uma minoria endinheirada, influente, manipuladora — exclui milhões de cidadãos da resolução dos seus próprios problemas. É natural que muitos desses milhões sintam que ninguém os representa e que só são chamados a pronunciar-se para sancionarem um jogo com cartas marcadas; e se recusem a participar nele.

A “falta de vocações” cívicas segue a linha da “falta de vocações” religiosas: o esgotamento das instituições que em dada época as estimularam e lhes deram expressão.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalvess 12/7/2021, 14:18

Felizmente desde há cerca de sessenta anos as crianças descendentes de famíliaus pobres nascidas sobretudo na província em cidades ou aldeias náo necessitam de serem internadas nos seminários para a escolaridade e preparem-se para a vida de sacerdote. A vocação fabricada pela disciplina férrea dos mestres cumpria essa finalidade.
Como disse Camões numdos sonetos mais dialéticos do Renascimento, Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, só que a Igreja mergulhada nas suas teses teológicas acredita que eka é imóvel.

Leonel Lopes Clérigo 16/7/2021, 10:05

Se, como julgo, o Afonso Gonçalves - que acertou em cheio... - me permite uma "adenda" ao seu comentário acima, acrescento agora a "faceta" ECONÓMICA, ainda tão desprezada entre nós.
A "imobilidade" da IGREJA é, de facto, "congénita" e tem a ver com o IMUTÁVEL DEUS que, com Seus "Escritos" a imobilizou para toda a eternidade.
Mas até aí tudo bem: "cada um come (ou deveria comer...) do que gosta". O Problema é quando nos obrigam a comer do que não se gosta.

Quando, na Praça LUÍS de CAMÕES olho o LARGO do CHIADO e vejo duas "imponentes" IGREJAS, uma em frente da outra, não posso deixar de questionar o porquê de tal "desperdício" (mesmo guardando a "crença" que "DEUS "tudo merece"). E foi assim que se foi o "OURO do BRASIL" e os outros "ouros". E foi assim que ficámos de "tanga" e "pedinchões", sem discernimento para sairmos fora da "saloiada" de patetas "novos ricos".

A dúvida que guardo hoje é se o tal RESILIENTE "abazucado" não está nessa linha de continuidade, onde ainda imperam os "velhos descendentes". Lastimo, mas acho que sim. Vai uma aposta!...

antonio alvao 28/7/2021, 15:02

"Os governos querem trabalhadores eficientes, não seres humanos. Porque seres humanos pensantes podem ser perigosos para o governo - assim como para as religiões.
É por isso que o governo e as organizações religiosas procuram sempre controlar a educação" (Jiddu Krishnamurti).
Podes, e deves ter ideias políticas, mas por favor, as «tuas» ideias políticas, não as ideias do teu partido; o «teu» comportamento dos teus líderes, os interesses de «toda» a humanidade, não os interesses de uma «parte» dela. E lembra-te de que «parte» é a etimologia de «partido« (Agostinho da Siva).
"Se o líder diz às bases tal evento não ocorreu, não ocorreu mesmo; se diz que dois e dois são cinco, são cinco mesmo - esta perspetiva me preocupa muito, mais do que as bombas
(George Orwell).
Foi neste amorfismo das bases que as ditaduras se cimentaram; em vez de exigirem às cúpulas qualidade ideológica no sentido de salvarem o socialismo e a liberdade do pensamento critico de baixo para cima; as minorias que o fizeram, em alguns países, foram abatidas como coelhos! E assim, em algumas regiões, pelo menos, terá que se voltar à estaca zero.


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar