A explosão social na América Latina

Manuel Raposo — 29 Junho 2021

A América Latina já não é propriamente o quintal dos EUA

A agitação social e política na América Latina nos anos 2019 e 2020, especialmente antes do desencadear da pandemia, trouxe para as ruas milhões de pessoas reclamando mudanças políticas e melhores condições de vida. No final de 2019, todo o Continente esteve em ebulição praticamente simultânea. Foi a maior turbulência das últimas décadas, marcada não só por manifestações pacíficas mas também por forte repressão militar e policial a que os manifestantes responderam com violentos confrontos com as forças do poder. Centenas de mortos e milhares de feridos não chegaram para calar os protestos.

Em termos regionais ou continentais, foram as maiores movimentações sociais verificadas em todo o mundo. O sobressalto atingiu o Continente de norte a sul: Haiti, Porto Rico, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Colômbia, Equador, Venezuela, Peru, Bolívia, Brasil, Paraguai, Chile, Argentina…

Uma movimentação que se reacende

Amortecida pela eclosão da pandemia, esta onda de protesto social voltou a dar sinais de vida na primeira metade de 2021, não apenas pela persistência das causas que a desencadearam em 2019 mas também pelo agravamento dessas mesmas causas: os regimes políticos instalados não conseguiram ou não quiseram responder às exigências de saúde pública e de condições de vida já de si precárias e que a pandemia potenciou.

Alguns dados permitem avaliar a gravidade da situação no conjunto. A região sofreu uma quebra do PIB de 7,7%, a maior em 120 anos, segundo a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe. Em todo o Continente, de acordo com a OIT, 34 milhões de pessoas perderam o emprego em 2020. O trabalho chamado “informal”, que domina a maioria das economias, atingiu 40% no Brasil e chegou aos 73% no Peru. No mesmo ano, as horas trabalhadas diminuíram quase 21%, o dobro da média mundial.

Particularizando alguns outros exemplos: No Haiti, diz o Banco Mundial, um terço da população não tem alimentação suficiente, a moeda desvalorizou 60% em 2020, 74% da população urbana vive em favelas e 75% da população rural é pobre. No Equador, a pobreza atinge 37% da população (e 73% dos povos indígenas), um aumento de 100% do preço dos combustíveis desencadeou uma explosão social que obrigou o Governo a fugir da capital.

Pontos de convergência

As razões próximas que desencadearam as movimentações de 2019-20 são diversas. Mas há vários traços de fundo que as empurram no mesmo sentido.

Um, é a profunda crise económica que agrava de forma contínua a condição de vida das massas trabalhadoras e aumenta o número de pobres. Nenhum país do Continente poderá gabar-se de ter uma economia saudável ou sequer estável. Mesmo os países que, em determinado período, levaram a cabo políticas de apoio social (Brasil, Bolívia, Venezuela) — com base num maior controlo dos recursos nacionais — viram-se a braços, na última década, com uma redução fatal do rendimento do Estado em resultado da quebra dos preços das matérias primas de que essas políticas quase exclusivamente dependiam. Todos os países que assumiram políticas económicas “neo-liberais”, caminharam ainda mais depressa para o desastre.

Outro traço comum é a crise política, que se revela não só na instabilidade dos regimes mas também, mais profundamente, no descrédito crescente das instituições do Estado. Isso é especialmente visível quanto aos regimes de direita, que se vêem a braços com diversas reclamações de reforma política. No Chile e no Peru são levantadas exigências de alteração constitucional visando as constituições reaccionárias ainda vigentes de Pinochet e de Fujimori; e no Brasil a popularidade de Bolsonaro vai-se diluindo. Por muito limitadas que sejam no seu alcance, estas reivindicações, que fazem recuar os poderes instalados, são espelho de como se degradaram as instituições burguesas e de como a sua “representatividade” se limita a defender os interesses das camadas superiores das classe dominantes, excluindo a massa de milhões das classes populares.

Também nos países que praticaram reformas sociais importantes nos últimos anos e iniciaram formas de representação popular (dos pobres e dos indígenas, nomeadamente), embora continue a haver uma base de apoio a tais políticas, acentua-se o desgaste dos regimes. A resposta às necessidade colectivas perde impulso, ficando a nu os limites de uma política que poupou as bases do poder dos grandes grupos económicos ou do imperialismo, deixando-os assim com larga força política. Foi isso que deu campo à destituição de Dilma Roussef e à eleição de Bolsonaro, ou à campanha de Guaidó para tentar derrubar Maduro, ou ao golpe militar-eclesiástico-palaciano que destituiu Morales e afastou o MAS (Movimiento al Socialismo) da presidência durante um ano.

Um terceiro traço consiste na proximidade de muitas das reivindicações levantadas: reforço das políticas públicas de saúde e de educação, reforço da previdência social, exigência de reformas políticas — mesmo se formuladas de forma vaga, sem marcado carácter de classe. Também algumas das características das acções de massas revelam afinidades importantes: a larga participação de mulheres, de jovens e de populações indígenas. Isto ficou patente, por exemplo, no 8 de Março de 2020, Dia Internacional da Mulher, em que milhões de manifestantes desfilaram em inúmeras cidades do Continente. O mesmo com as manifestações de populações indígenas em apoio de Evo Morales, no seu regresso à Bolívia após o golpe de Estado, e no Peru em apoio da vitória eleitoral de Pedro Castillo a 6 de junho.

Por um lado, a falência dos planos económicos ditos “neo-liberais” (baseados num capitalismo de extorsão máxima das classe trabalhadoras e numa entrega de recursos nacionais à voracidade dos gigantes imperialistas), por outro lado, o esgotamento das políticas nacionalistas anti-”neo-liberais” — conduzem as massas trabalhadoras dos diversos países para um terreno comum de luta. Existe portanto um internacionalismo objectivo em todas estas manifestações que o agravar da tripla crise — económica, pandémica e política — só poderá reforçar. De um internacionalismo que desponta de forma espontânea tenderá a avançar-se para um internacionalismo organizado, plurinacional, em que certamente contam as afinidades culturais e de língua.

Um quarto ponto a assinalar é a tendência para a polarização social, por outras palavras: o extremar da posição das classes e a agudização da luta entre elas. Muitas das acções de massas agregam diversos sectores sociais sem clara demarcação dos interesses de classe (como na exigência de revisão constitucional no Chile e no Peru); noutros casos, há mesmo uma submissão de parte das massas trabalhadoras ao reaccionarismo pequeno-burguês (como no apoio a Bolsonaro).

Mas noutras movimentações existem claros sinais de polarização política. Contam-se neste caso as mobilizações das populações trabalhadoras, pobres e indígenas em torno das candidaturas presidenciais do MAS em outubro de 2020, na Bolívia, que reverteu o golpe de estado de um ano antes; e, recentemente, a vitória, embora tangencial, de Pedro Castillo no Peru, que venceu em 17 dos 25 departamentos do país obtendo vitórias massivas (acima dos 80%) nas regiões mais pobres do país.

Embora lentamente, é de esperar que a dissociação dos interesses das diferentes classe se vá processando à medida da experiência feita nas lutas concretas, tornando assim mais radicais e livres de tutela as reclamações das massas trabalhadoras.

Uma dor de cabeça para o imperialismo EUA

Será seguramente a estagnação do capitalismo mundial, que redundou numa crise crónica, o factor determinante na evolução dos acontecimentos políticos e sociais. Como é sabido, e como os dados citados mostram, os efeitos da crise económica-pandémica penalizam sobretudo os países e regiões mais pobres e dependentes. Este efeito desproporcionado aumentará a distância que separa o mundo imperialista do mundo dependente e agravará portanto os conflitos sociais.

A posição geográfica da América Latina faz com que o problema de todo o Continente se repercuta de modo especial no norte rico: os EUA — à semelhança do que sucede na Europa em relação à África e ao Médio Oriente.

Por outro lado, a América Latina já não é propriamente o quintal dos EUA. Dois gigantes económicos, o Brasil e o México, tendem a disputar um lugar na arena mundial influenciando com isso a arrumação de forças em todo o continente Centro e Sul Americano. Muitos outros países de menor peso económico ou político agitam-se igualmente em busca de saídas do beco em que o domínio imperialista encerrou as suas economias e as suas sociedades.

Quer isto dizer que o imperialismo norte-americano não tem pela frente apenas a concorrência da China no plano mundial — tem também a concorrência, ao pé da porta, de uma segunda linha de potências económicas que, ao arrastarem consigo outros tantos países, podem contribuir para alterar a balança da luta de classes em todo o Continente. Este é outro dos frutos amargos da globalização do capitalismo que os EUA não podem deixar de provar.

Em 1843, diante do que parecia ser a impossibilidade de uma revolução popular na Alemanha — dada a natureza reaccionária e brutal da monarquia prussiana, aparentemente imbatível, e perante a resignação do povo alemão — Karl Marx, numa carta a Arnold Ruge, respondeu deste modo à situação:

“Nenhum povo desespera, e mesmo que, por muito tempo, mantenha a esperança apenas por tolice, chegará o dia, depois de muitos anos, em que, por inteligência repentina, realizará todos os seus desejos.” E rematou: “Se eu não desespero [da situação presente] é unicamente porque essa situação desesperada me enche de esperança”.

Pouco tempo depois, eclodiram as revoluções de 1848 (a “Primavera dos Povos”) que abalaram os regimes monárquicos e autocráticos da Europa, de ocidente a oriente.


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