Reflexos lusitanos da nova Guerra Fria

Manuel Raposo — 21 Junho 2021

Dezenas de iguais delações foram feitas pela CML sem que nenhum clamor se levantasse

A entrega, pela Câmara Municipal de Lisboa, de uma lista nomes de manifestantes oposicionistas à embaixada da Federação Russa gerou uma novela que vale a pena desdobrar em dois ou três capítulos.

O primeiro deles consiste no facto — agora óbvio, mas desconhecido da generalidade dos cidadãos — de que as Câmaras Municipais estão incumbidas  de proceder as estas denúncias por sistema. Tal prática, que estava cometida aos extintos Governos Civis (de má memória), terá passado de mansinho para as autarquias, sem que ninguém pusesse o procedimento em causa. Ou seja, este tipo de denúncia é um automatismo que o nosso democratíssimo regime acha normal.

O segundo capítulo tem a ver com o pressuroso inquérito que o presidente da CML, Fernando Medina, mandou instaurar. Ficou a saber-se que o serviço encarregado da delação continuou a praticá-la como um mero acto administrativo, apesar de haver ordens internas para que as informações fossem encaminhadas não para as embaixadas, mas para o ministério da Administração Interna e para as polícias.

Duas conclusões ressaltam daqui. Uma, é que aquele automatismo, de ressonâncias pidescas, está tão enraizado e é tido por tão natural que nenhum rebate de consciência e nenhuma ordem interna o pôde travar. Outra, é que o apontar de dedo ao “erro” cometido pelo departamento municipal em causa não muda nada no que respeita ao fundo do problema, que continua a ser a prática instituída da delação — apenas passando o trabalho sujo da Câmara para o MAI e as polícias.

O terceiro capítulo tem por tema uma batalha meramente partidária. A proximidade das eleições autárquicas e as fracas perspectivas de vitória do candidato da direita PSD-CDS estavam a pedir um choque político capaz de espevitar a campanha de Carlos Moedas. Foi um maná que a direita aproveitou e que toda a comunicação social, incapaz de se bater por verdadeiras causas políticas, agarrou com ambas as mãos. Daí a gritaria e os interesseiros pedidos para que Medina se demitisse — porque nenhuma questão de princípio acerca da prática das denúncias foi evocado pela direita, como se deduz do capítulo seguinte.

O quarto capítulo é o que tem verdadeiro molho político. A denúncia que desencadeou todo este falatório foi apenas a que envolveu cidadãos russos e a embaixada da Federação Russa. Antes disso, porém, dezenas ou centenas de iguais denúncias foram feitas a outras embaixadas, entre elas a dos EUA e a de Israel, por razões em tudo iguais. Em nenhum destes casos o clamor de agora se levantou, porque se tratava dos “nossos aliados” e não do “malvado” Vladimir Putin.

O Comité Palestina, nomeadamente, lembrou em comunicado recente a entrega à embaixada israelita, pela CML, dos nomes dos promotores de uma manifestação realizada em Junho de 2019, facto que até a imprensa israelita comentou. E divulgou a cândida justificação dada então pela assessora de imprensa do presidente da CML, dizendo que era “prática habitual da CML” dar informação a “várias entidades” entre elas “as forças de segurança e o Ministério da Administração Interna”, bem como “a representação diplomática” de um país que seja “visado pelo tema de uma manifestação”.

Tudo claro, portanto, quanto a esta prática habitual. E tudo escuro quanto à invocação de “direitos humanos” que só agora é feita.

O quinto capítulo é o pano de fundo do anterior. Não por acaso a “questão russa” é levantada com tanta veemência precisamente agora. Está em curso, com epicentro nos EUA de Biden, uma campanha de ataque e demonização da Rússia, personalizada, para obtenção de efeitos mais fáceis, na figura de Vladimir Putin — queira-se ou não, o presidente eleito da Federação Russa. Na recente cimeira do G7, foi claro o esforço dos EUA para, juntamente com os centuriões da NATO, obterem o concurso dos europeus para uma nova Guerra Fria, de que a Rússia e a China são os alvos.

O entusiasmo canino com que a direita portuguesa entrou nesta liça mostra a sua plena disponibilidade para seguir, uma vez mais, a voz do dono. Por agora, a contribuição para a campanha é mesquinha, de alcance paroquial. Mas não faltará quem — Governo, diplomacia, comentadores, média incluídos — queira pôr-se em bicos de pés para provar fidelidade aos patronos. A menos que a esquerda se empenhe numa contra-campanha que desmascare toda esta tramóia.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalvess 22/6/2021, 16:39

Convencido que é o Marquês de Pombal do séc. XXI Fernando Medina agarrado ao seu mandato e renunciando à sua alta responsabilidade como Presidente da Câmara transformou uma pequena guerra de Alecrim e Mangerona numa batalha digna da monarquia inglesa escrita por Shakespeare. Lisboa arrasada pelo desmando Medina e companhia, como Robles e J. Manuel Fernandes, perde cada vez mais a sua identidade, simultaneamente popular e iluminista num refúgio para milionários nórdicos e de outras origens contra a expulsão da sua população. É esta a política de cidadania que a arquitectura actual pratica e instala definitivamente.

Leonel Lopes Clérigo 23/6/2021, 12:38

QUERRA FRIA...OU QUENTE?

O texto acima de MR vem chamar a atenção para algo que pode "estar na forja": a "NOVA GUERRA FRIA".
Já alguém referiu que, na HISTÓRIA, a repetição "é farsa" mas o "NOVO", quando dá seus primeiros passos ainda confusos, tem também por hábito mascarar-se com as "roupagens do PASSADO".
No texto "abaixo" de António Louçã de 7 de Junho de 2021 - "Nacionalização da dívida dos EUA - o caminho para a guerra mundial?" a coisa surge-nos mais "crua" e "sem papas na língua" ou seja: sem fantasias adocicadas e a querer dizer, "com o Imperialismo não se brinca".
Efectivamente, podemos já hoje observar os USA a "perderem o pé", a ficarem com clara consciência que as coisas não são ETERNAS e qualquer grande NAÇÃO IMPERIALISTA tem também seus "deslizes" e sua DECADÊNCIA: a velha ROMA - para só falar aqui dela - passou por isso.

1 - Um senhor Britânico de nome CECIL RHODES - IMPERIALISTA dos "quatro costados" e homem importante na formação do Império Britânico, espécie de Indiana Jones na busca das riquezas africanas (diamantes) no sec. XIX e, talvez por isso, alcunhado como o "NAPOLEÃO (da cidade) do CABO" - é, no entanto, pouco conhecido pelo célebre "conselho" que deu "à borla" às "elites" estadunidenses:
“Se quiserem evitar a guerra civil, vocês devem tornar-se imperialistas".
Ou seja: partam para a conquista de territórios para poderem ampliar a "PRODUÇÃO e a TROCA", abrirem as portas ao BEM-ESTAR e resolverem os "problemas internos".
Desconheço se este "conselho" de Cecil Rhodes teve larga influência no destino dos USA mas, o que parece certo, é que a condição IMPERIALISTA foi plenamente assumida por esta Nação e com alguma ilusória convicção de que estavam salvando a humanidade.

2 - Quando se "vasculha", nas entrelinhas da História, os IMPERIALISMOS (mais próximos de nós) - da Persia à Grécia de Alexandre e a Roma, do Islão aos Europeus e aos USA - parece surgirem eles da necessidade em se impor uma "paz forçada" e necessária ao desenvolvimento da PRODUÇÃO e do COMÉRCIO entre diferentes "regiões" que PRODUZEM - ou podem produzir - "excedentes para troca". E quando essa produção e seu comércio se "DESEQUILIBRAVA" entre essas regiões, a coisa "ficava preta" exigindo a mudança do "CENTRO IMPERIALISTA". O Poder imperial do Islão foi "arruinado" - não militarmente pelo CRUZADISMO do Papa Urbano II, um "desastre" - mas pelas DESCOBERTAS que mudaram o CENTRO de PRODUÇÃO e de COMÉRCIO do MEDITERRÂNEO para o ATLÂNTICO.

3 - O CAPITALISMO - ele também centrado na PRODUÇÃO e TROCA de MERCADORIAS - não alterou as "regras do Jogo" do PASSADO e foi forçado, na sua evolução "produtivista" da CONCORRÊNCIA ao MONOPÓLIO, a tornar-se IMPERIALISTA, a invadir o mundo - e tomar conta dele... - com os seus NEGÓCIOS. Por isso se pode dizer que a apregoada DEMOCRACIA que por aí anda nas bocas burguesas do Mundo, mais não é que um "FLATUS VOCIS", tal como um "cheirinho" no café. A DEMOCRACIA não casa nada bem com o IMPERIALISMO. Só nas histórias "cor-de-rosa".

4 - Temos hoje à nossa frente a "velha fase" dum IMPERIALISMO DECADENTE e onde surge inevitavelmente a pergunta: O QEU SE VAI SEGUIR? A repetição do passado - a formação de um novo CENTRO IMPERIALISTA - ou ALGO NOVO?
Este "algo novo" para poder surgir, terá que "SUPERAR" o sistema já decadente do CAPITALISMO que tem vindo a levar um forte "encontrão" em época de "COVID" ao mostrar sua fraca capacidade em resolver os "velhos" e "novos" problemas das nossas Sociedades e onde a desigualdade é cada vez mais gritante.
Daí, em minha simples opinião, haver todo o sentido em "JUNTAR" os textos de F. Louçã e M. Raposo: não será a "nova" já gasta "GUERRA FRIA" que resolverá o que quer que seja.
O Planeta tornou-se demasiado pequeno para ainda existir quem ambicione "dirigir o mundo" ao gosto das suas "clientelas particulares" e "restritas". E a tecnologia de que já se dispõe, julgo poder permitir duas saídas: ou o DESASTRE completo e fatal ou o CAMINHO dum NOVO e GERAL BEM-ESTAR. Entre estes dois "pólos" já não há lugar para os "distraídos" das "cervejolas" e do "futebol" que adoram "assobiar para o lado".

Nota Final
Para melhor enquadrar este meu comentário, considerei recordar aqui 2 questões:

1 - A primeira tem a ver com a População Mundial para melhor se assentar os "pés no chão", sobretudo quando "aventureiros" insistem ir "novamente" por caminhos perigosamente "trágicos".

Estimativa da população total do Planeta TERRA: ................................................7.874.000.000
População da China + Rússia: (2 Estados)..................................................................1.557.715.000
População dos USA + UE: (28 Estados = 27 da UE + USA)......................................826.250.000
População do G7 - Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão,
Reino Unido e USA ..................................................................................................................773.073.890
População dos BRICS: (Brasil, Rússia, India, China, South Africa).....................3.208.779.380

2 - A segunda questão tem a ver com a DIALÉCTICA e diz respeito ao ponto da "Quantidade que se transforma em qualidade". E quando a "Quantidade" já dispõe de "Qualidade", aí é o Diabo.

Maria Teresa Franco Alves Da Silva 25/6/2021, 15:17

Ora bem,centrando no tema do artigo do MR, o "pano de fundo" deste incidente:

- Algumas das competências dos antigos governos civis transitaram para as câmaras municipais, concretamente a autorização de protestos/manifestações em espaços públicos e consequentemente veiculação desses eventos e dados pessoais dos seus promotores a embaixadas dos países cujos governos foram visados de protesto.Ou seja, transferência de competências entre instituições.

-As competências assim transferidas, não foram revistas ou adaptadas,no espírito do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados Pessoais (RGPD), regulamento que decorre de direito comunitário, por competência do Parlamento Europeu, em 2016.

-O referido RGPD, foi transposto para o regime jurídico nacional em 2018, pela Lei 58 ( Agosto),Lei da Protecção de Dados Pessoais.

-Em 2019, as organizações palestinianas, com representação em Portugal,deram o alerta e protestaram numa situação de natureza semelhante, mas da parte da CML, não houve qualquer resposta ou reacção.

-O presidente da CML , face à notoriedade do incidente e seu aproveitamento politico, decide um inquérito interno ( de uma semana ) que revela que , desde 2018, houve 52 "incidentes" desta natureza, tendo as respectivas embaixadas dos governos dos países em causa sido "devidamente" informadas sobre os dados pessoais dos promotores/ activistas dessas demonstrações.

O aproveitamento politico, a três meses de eleições municipais, por parte do candidato da direita, é o "capítulo" mais irónico e interessante do artigo sobre o ERRO enorme institucional e à total revelia do quadro legislativo nacional e comunitário.

Então , mantendo a ironia , poderia afirmar que ainda bem que "desta vez"foi com cidadãos russos e envolveu o governo da Rússia, pois de contrário "ninguém dava por ela" na CML.

afonsomanuelgoncalvess 26/6/2021, 16:53

É pena que Maria Teresa Silva ponha o aproveitamenyo politico à frente do sigilo pessoal que todo o cidadão necessita para defesa da sua individualidade. Lembro que mesmo os médicos o fazem por deve deontológico, os padres, os advogados, jornalistas etc. Não me parece pois necessário para o caso dos médicos, por ecemplo, descrever e justificar essa prática desde Hipocrates.


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