Contra a corrente

Editor — 9 Junho 2021

A comunicação social nacional é hoje detida, como se sabe, por três ou quatro grandes grupos empresariais com raízes em várias áreas de negócios. A pressão exercida por tais monopólios sobre os conteúdos informativos é esmagadora — para os profissionais, mas sobretudo para o público.

Quem está do lado de cá dos jornais, das televisões ou das rádios não conhece os bastidores onde tudo se decide. Mas apercebe-se da parcialidade das notícias, da preferência dada a comentadores situacionistas, da colocação em lugares de destaque dos “colaboradores” mais fiéis, da omissão programada do que verdadeiramente diz respeito à vida colectiva, do país ou do mundo, e que poderia contribuir para mudar-lhe o rumo.

Como é patente, numa época de domínio dos monopólios económicos, o poder político e social dos estratos superiores da burguesia capitalista é praticamente absoluto — não só quanto ao estrito exercício da acção política, mas igualmente no que toca à formação das mentalidades.

É para este condicionamento do modo de pensar colectivo e individual — a que o poder (Estado, capital, empresas de comunicação,…) chama “opinião pública” — que os média dominantes contribuem. Estreitamente vinculados ao mundo empresarial de topo, são, para além (ou até acima) do próprio negócio, ferramentas de domínio social.

Carlos Santos Pereira (1950-2021)

Raros são os profissionais de jornalismo que ousam ou conseguem ir contra a corrente da informação ditada pelos centros de poder. Conta-se neste número Carlos Santos Pereira, recentemente falecido. Bom conhecedor da Europa de Leste, denunciou, nos anos 1990, o papel da NATO e dos imperialismos europeu e norte-americano no desmembramento da Jugoslávia. Fez o mesmo a respeito das guerras no Próximo Oriente, no Iraque ou no Afeganistão. Sempre com o desassombro de mostrar as agressões do imperialismo por todo o mundo como elas são: prepotência, terrorismo de Estado.

Com poucas excepções, os obituários redigidos por colegas de ofício quase se limitaram a cumprir a formalidade de referir o seu nome e a sua condição de outsider, mas deixando na sombra o que o destacou: a decisão de resistir.

A talhe de foice: Realizou-se em maio passado, no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia, uma conferência (“de Alto Nível”) sobre jornalismo, ambiciosamente intitulada “A inteligência artificial e o futuro do jornalismo”, que se interrogava sobre se “a inteligência artificial tomará posse do quarto poder”.

Reclamando-se defensores da “imprensa livre, independente dos diversos poderes”, e preocupados com “o fenómeno da desinformação”, os promotores vêem na  inteligência artificial um risco para a sobrevivência do sector, uma vez que ela “já permite a produção automatizada de certas peças informativas”. (Sobrevivência do sector significa aqui a viabilidade económica das empresas jornalísticas e dos meios de informação. O negócio, portanto.)

Pode ser muito interessante tentar adivinhar “o jornalismo do futuro na era digital”. Mas quando isso serve para passar ao lado das questões do presente, fica a sensação de que algo se quer evitar. Do ponto de vista dos leitores, espectadores ou ouvintes, ficaram sem resposta os temas mais sensíveis de hoje (alguns, de sempre). Por exemplo: 

Porque é que o jornalismo insiste em glorificar-se como um “quarto poder” — pretensamente independente e crítico de todos os outros — quando está à vista que o jornalismo dominante é, cada vez mais, instrumento e porta-voz do(s) poder(es) instalado(s)?

Porque é que, com ou sem inteligência artificial, a generalidade da comunicação social tende a ser um veículo de transmissão “automatizada” de “certas peças informativas” com o claro propósito de moldar a opinião pública?

Por que mecanismos os monopólios da comunicação reduzem os jornalistas a meros reprodutores de notícias pré-fabricadas, concertando os conteúdos informativos em ordem a forjar uma opinião geral incontestada que passa por ser a verdade?

Porque não há uma corrente política de jornalistas que se insurja e faça contra-vapor a este estado de coisas?

Por oposição à voz do dono, surge, de vez em quando, um Carlos Santos Pereira. Ou um Rui Pereira, que revelou, no Tribunal Mundial sobre o Iraque (Porto, Lisboa, 2005), a existência de verdadeiras “ordens de serviço” informativas, emanadas dos centros de poder imperialistas, seguidas fielmente pela comunicação social do mundo inteiro, Portugal incluído. Ou um Robert Fisk e um John Pilger, que denunciaram como puderam a política imperialista no Médio Oriente e a agressão ao Iraque. Ou um Wilfred Burchett, que alinhou pelo “outro lado” nas guerras da Coreia e do Vietname. Ou um Julian Assange e um Glenn Greenwald que, com as informações divulgadas por Edward Snowden e Chelsea Manning, revelaram os crimes cometidos pelos serviços secretos e as forças armadas dos EUA.

Esses profissionais, sim, estão alinhados com “o futuro do jornalismo” porque se decidiram a desmascarar os discursos oficiais, rompendo o bloqueio mental imposto pelo poder através da comunicação empresarial.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalvess 9/6/2021, 14:29

Apesar de toda a imprensa, canais de televisão, comentadores clonezados de todas as estações se referirem à realidade de acordo c om as suas convicçôes a opinião pública acaba por perceber que está a ser enganada. E ainda que de vez em quando alguns jornalistas sérios respeitem a verdade dos factos, acabam a serem postos na prateleira.
Acontece ainda que nos sectores de esquerda os analistas influenciados pela propaganda anti-comunista acabaram por embarcar nas análises científicas dessa gente. Foi assim que a Revolução Russa se tornou maquiavélica nos meios e nos fins e que trouxe à superfìcie as críticas mais distorcidas e ambíguas dessa grande revolução.


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar