Os pioneiros da moderna pirataria aérea
Urbano de Campos — 30 Maio 2021
O desvio do avião da Ryanair pelas autoridades da Bielorrússia e a prisão de um opositor do regime que ia a bordo foi, acima de tudo, um gesto de estupidez política cujas consequências talvez não tenham sido inteiramente calculadas pelo regime de Lukashenko. Mas o alarido que os meios políticos e jornalísticos ocidentais têm feito sobre o assunto não passa a ser, lá por isso, uma defesa de regras e de direitos consagrados internacionalmente, como pretendem os governos dos EUA e da Europa. Pelo contrário, os seus protestos indignados têm todos os ingredientes da mais rotunda hipocrisia.
Foram, com efeito, as autoridades dos EUA e da União Europeia os pioneiros desta prática de pirataria aérea estatal, chamemos-lhe assim.
Em julho de 2013, um avião boliviano que voava de Moscovo para La Paz, transportando o então presidente Evo Morales, foi forçado a aterrar em Viena porque os serviços de informação dos EUA (na presidência de Obama e vice-presidência de Biden) suspeitaram que a bordo iria Edward Snowden, na intenção de obter asilo político na Bolívia.
Snowden, o jornalista que denunciara, em junho desse mesmo ano, as acções de espionagem dos EUA, era (e é) perseguido pelas polícias norte-americanas, acusado de traição por ter revelado “segredos de Estado”, na realidade crimes de terrorismo de Estado cometidos pelos serviços secretos e pelas forças armadas dos EUA.
O avião de Morales, no regresso a La Paz, sobrevoaria a Polónia, a República Checa, a Áustria, a França, a Itália, a Espanha e Portugal. Bastou um sinal das autoridades dos EUA para que, já com o avião sobre a Áustria, os demais países na linha de rota cancelassem (Portugal incluído) as autorizações de sobrevoo dos seus espaços aéreos, forçando a aterragem em Viena. Colocada de prontidão, a polícia austríaca vasculhou de imediato o avião. Não encontrou Snowden, que ficara em Moscovo, mas se ele estivesse a bordo seria evidentemente raptado.
Além da tentativa de capturar Snowden, o sequestro foi também um sinal dado a Morales — e através dele aos dirigentes sul-americanos hostis ao imperialismo norte-americano — de que a sua segurança não era coisa garantida em nenhuma parte do mundo. Tudo dependia dos humores dos EUA que contavam com a fidelidade segura dos seus cúmplices.
Se “tecnicamente” os dois sequestros se equivalem, politicamente não.
Desde logo, porque foram os EUA e a UE os primeiros a violar a lei internacional e isso conta para todos os efeitos. Quando o agora secretário de Estado norte-americano Antony Blinken (conselheiro nacional de segurança em 2013), seguido pelos europeus, “condena energicamente” o regime bielorruso e classifica o desvio do avião como “descarado e chocante”, não só não tem moral para o fazer, como está, antes de mais, a acusar retroactivamente os EUA e a UE.
Segundo, porque o sequestro de 2013 não foi um acto isolado de um regime acossado. Foi um conluio de diversos Estados que deliberadamente resolveram violar regras internacionalmente aceites, no propósito de permitir que um dos membros da “família” consumasse uma perseguição política contra um opositor. A conspiração foi internacional.
Terceiro, porque as consequências para os EUA ou a UE e para a Bielorrússia não serão as mesmas. Como se sabe, nenhum mal veio aos norte-americanos ou aos seus serventuários europeus pelo sequestro de 2013 — nenhuma condenação pelas instâncias internacionais, nenhuma sanção ou bloqueio económico. Bastaram uns mal-amanhados pedidos de desculpas pronunciados entre dentes para sanar o lado diplomático do caso e para que todo o lado político e criminal do assunto fosse abafado e esquecido.
Em contraste com a impunidade de que gozam os EUA e a UE, adivinha-se que as consequências políticas para a Bielorrússia serão pesadas. O incidente veio dar de bandeja a norte-americanos e europeus pretextos para reanimar a campanha de subversão do regime levada a cabo no verão do ano passado, e para, através da Bielorrússia, prosseguir a campanha contra a Rússia. As declarações dos dirigentes europeus e do presidente norte-americano, ligando o caso ao movimento de oposição ao regime de Lukashenko, prometendo “sérias retaliações e sanções”, não deixam margem para dúvidas.
Os EUA, igualmente, não escondem a intenção de exercer pressão política sobre a Rússia, nem disfarçam os seus propósitos de impulsionar a extensão dos poderes da NATO no leste europeu a pretexto do caso. Vão nesse sentido as declarações da porta-voz da Casa Branca, a 24 de maio, sublinhando que Washington estava a coordenar acções com a UE, com a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) e também com a NATO, para decidir “os próximos passos” de uma resposta conjunta.