Odemira, ou a modernidade da escravatura

António Louçã — 5 Maio 2021

Às primeiras palavras sobre uma requisição civil de alojamentos devolutos para instalar migrantes, houve alarme geral: aqui d’el rei que os comunistas comedores de criancinhas querem pôr-nos a dormir ao relento, aqui d’el rei que violam os direitos humanos dos proprietários. Afinal, a gritaria era uma folha de parra para encobrir as cumplicidades locais com o tráfico de pessoas e com a nova escravatura. E essas cumplicidades locais são alimentadas por conivências políticas, com sede no Governo.

À conta da pandemia, descobriu-se subitamente que há em Odemira casas de habitação, normalmente destinadas a uma família, e que se encontram ocupadas por três a quatro dezenas de imigrantes vindos da Índia, do Nepal, do Paquistão, de vários países africanos. Um quarto está normalmente ocupado por oito pessoas. Muitas não se conhecem, convivem sem máscara, fazem turnos para utilizar a cozinha e para a casa de banho nem isso, porque a porcaria é tanta que mais vale não tomarem banho e fazerem as necessidades na natureza.

A empresa que recrutou os imigrantes paga a cada um deles na ordem dos 600 euros mensais, mas antes disso retém uns 120 a 140 por estes alojamentos, se assim se lhes pode chamar. Com mais de 30 pessoas numa casa, a empresa encaixa 3.000 a 4.000 euros de renda por mês. E o que sucede em Odemira sucede noutras regiões do Alentejo e da Andaluzia.

Como os imigrantes se sujeitam a tais condições indignas e insalubres, é algo que poderá ser explicado inicialmente pelo desconhecimento de outras alternativas mas, a partir de um certo tempo de permanência, o desconhecimento torna-se impossível e a sujeição terá de ser garantida por outros mecanismos. Não consta que o SEF ou a PJ tenham investigado se as empresas angariadoras de mão-de-obra retêm os passaportes dos imigrantes, para melhor garantirem a sua escravização. Mas este mecanismo clássico é dos livros.

O que se sabe, de ciência certa e por testemunhos abundantemente recolhidos pela imprensa, é que há em Odemira empresas-fantasma, que apenas existem para lavar dinheiro e para escrever cartas convocando os imigrantes a virem instalar-se em Portugal num posto de trabalho escravo. E sabe-se também que várias pequenas empresas, lojas, restaurantes, têm sido pressionadas a escrever tais cartas para pessoas que depois irão trabalhar na agricultura intensiva da região.

Como era de esperar, os polícias sentem-se incomodados por nada fazerem sobre esta rede de interesses criminosos e apontam o dedo ao Governo. Não os limpa de responsabilidades nas suas acções e omissões, mas não deixa de ser revelador. Assim, segundo citações da Lusa, declarou Acácio Pereira, o presidente do sindicato que representa os inspectores do SEF: “O Governo tem andado a dormir e mais concretamente o senhor ministro da Administração Interna fazendo de conta que a situação não existe, permitindo que as empresas escravizem os trabalhadores, porque é de escravização que estamos a falar, permitindo que esse trabalho entre na economia e que essa miséria humana continue a existir”.

Esta realidade, disse ainda Acácio Pereira, “só veio à ribalta por questões de saúde e era impossível escondê-la”. E acrescentou: “O Governo tem permitido essa escravização dos trabalhadores migrantes (…) que são pagos a preços dos países de origem, e vivem em condições sub-humanas ao dividirem 10, 20, 30, 40 a mesma casa”.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não é dos mais afoitos a violar os códigos do politicamente correcto nem dos mais toscos em justificar brutalidades policiais. Se o compararmos com os seus pares deste Governo e doutros, sobressai mesmo por uma certa ponderação. Ao pegarmos nas declarações que proferiu em visita a Odemira, não estamos portanto a escolher um alvo fácil nem a polemizar contra uma caricatura.

As declarações de Cabrita em Odemira são o melhor que este Governo é capaz de produzir, reagindo a uma situação de crise que não é só sanitária, mas também social e humanitária. E o melhor que o Governo consegue produzir é muito mau.

Diz o ministro: “O primeiro direito humano é o direito à saúde”. Conversa de quem pretende secundarizar outros direitos humanos.

Diz o ministro: “Neste momento, a prioridade absoluta é a saúde pública e a resposta à pandemia”. Mais uma vez: não é prioritário combater outras violações de direitos humanos.

Diz o ministro que os problemas de habitação e do modelo económico da região “não serão, de certeza, resolvidos em uma ou duas semanas”. Conversa de quem vive há muito com esses problemas e nada tenciona fazer para começar a resolvê-los.

Diz o ministro: “Não é agora, não é hoje, não é essa a prioridade da cerca sanitária. Não é resolver esse problema, mas o Governo está atento”. Atento e assistindo, de braços cruzados e perna traçada.

Diz o ministro que o seu Ministério tem em Serpa um sistema para controlar as condições de segurança colocadas pela exploração de olival intensivo e que este “já foi criado há alguns anos”. A eficácia do sistema está à vista.

Diz o ministro que é “positiva a presença de trabalhadores estrangeiros a residir em Portugal “. Os plantadores de algodão no Alabama diziam o mesmo dos escravos que lhes chegavam de África.

Diz o ministro que o Governo tem uma política de inclusão que “levou aliás à constituição, pela primeira vez, de uma secretaria de Estado para a Integração de Migrantes”. Como naquela anedota soviética, de se querer incrementar o combate à burocracia e se ter criado uma comissão para o efeito.

Diz o ministro que o SEF tem “atuado no quadro daquilo que é a dimensão criminal”. A escravatura não tem, portanto, uma dimensão criminal.

Diz o ministro que existe no concelho de Odemira “uma economia [do setor hortofrutícola] que é relevante para a região”. E assim se nobilita uma teia de interesses criminosos que subjaz a essa “economia”.

Odemira é apenas um exemplo, que fez manchetes da imprensa devido à pandemia. E no entanto, o iceberg do tráfico de pessoas inclui, como o próprio SEF admite, diversas comarcas do Alentejo onde correm actualmente 32 inquéritos, os concelhos de Beja e Serpa com a exploração do olival intensivo, a Beira Interior durante a apanha das cerejas, o Douro nas vindimas, Trás-os-Montes na estação das castanhas. Ao contrário da pandemia, a escravatura não faz manchetes porque é moderna e lucrativa.


Comentários dos leitores

Leonel Lopes Clérigo 6/5/2021, 10:35

O "SEGUNDO FUNERAL" do PADRE ANTÓNIO VIEIRA

Os "acontecimentos" recentes de Odemira, são um "livro aberto" sobre o FUNCIONAMENTO do CAPITALISMO ou seja: Capitalismo é aquilo mesmo, nu e cru e não uma excepção. Capitalismo é SEMPRE EXPLORAÇÃO do TRABALHO ALHEIO. Aliás, nem é preciso ir muito além: qualquer "pato bravo" sabe que só se enriquece quando se tem "gente" a "trabalhar para ele", não lhes pagando o VALOR INTEGRAL que o trabalho deles merece. E assim NASCE O LUCRO (mais propriamente a MAIS-VALIA). E, quanto mais EXPLORADO for o TRABALHADOR, maior é o LUCRO. Só não vê isto quem não quer. Por isso não compreendo tamanho "alarido" à volta da "pacata" ODEMIRA.

Não querendo fazer "papel de bruxo", o nosso Padre António Vieira - se fosse vivo - talvez solicitasse à Burguesia Portuguesa uma nova "edição" dos seus "SERMÕES" como convém a um bom "moralista". Mas duvido que a nossa Igreja Católica - e sobretudo o Arcebispado de Braga - o permitisse. Até porque os "tempos" mandam hoje "maior distinção" entre o que "A César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Mas tenho uma vaga esperança que os nossos críticos do "ANACRONISMO" venham à liça "demonstrar" o seu "desagrado" para com o "nosso" CAPITALISMO SUBDESENVOLVIDO e "desadequado" dos TEMPOS" que correm.

afonsomanuelgoncalves 6/5/2021, 13:44

Mais um acontecimento sobre todos os anteriores que chocam quem toma deles conhecimento, mas todos se indignam e todos sacodem a água do capote. É o confinamento cego, a justiça arbitrária, a saúde a romper pelas costuras, as leis do parlamento e do governo absolutamente inúteis e contraditórias, o moralismo do comentador Presidente, o grito encenado da esquerda reformista incapaz de reformar o que quer que seja. Este é o retrato sintéctico de um país que pertence e se orgulha de estar na UE.

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 22/1/2022, 17:54

Excelente artigo.


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