O sagrado direito de causar miséria

Manuel Raposo — 25 Abril 2021

Com a pandemia, a destruição de emprego foi feita à custa dos trabalhadores mais pobres

Nos últimos 20 anos, a taxa de pobreza em Portugal andou sempre acima dos 20% da população, com picos em 2004 (26%) e em 2013 (30%). Os números — do INE, da Pordata e de um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos —, mesmo se não coincidem em absoluto, não deixam margem para dúvidas acerca da dimensão da situação. Presentemente, são mais de dois milhões os portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza, o que significa ter um rendimento anual de 6 mil euros, ou 500 euros por mês. Mais significativo ainda, um terço destes pobres são trabalhadores empregados. Dito doutro modo, o trabalho não é remédio garantido contra a pobreza.

Os dados provam que a maioria dos pobres nasceu em meio pobre e assim permanece. O seu padrão de vida é passarem por privações em criança e na juventude, sofrerem de doenças resultantes da pobreza, abandonarem a escola para ajudar a família, entrarem prematuramente no mercado de trabalho, aceitarem empregos pouco qualificados e mal remunerados. Perpetua-se assim, através deste círculo vicioso, a sua condição de classe de origem — ficando desmentida a tão decantada “igualdade de oportunidades”. Pelo contrário, acentua-se a tendência para uma maior miséria nas classes mais baixas.

A destruição de emprego verificada com a erupção da pandemia foi feita à custa dos trabalhadores mais pobres. Até ao segundo trimestre de 2020, diz o INE, tinham sido destruídos 184 mil empregos nos três escalões mais baixos da economia (que são: menos de 310€, de 310€ a 600€ e de 600€ a 900€ líquidos por mês). Daqueles 184 mil empregos eliminados, 85% tinham salários abaixo dos 600€ e os restantes 15% abaixo dos 900€.

Em contraste, no período de um ano entre meados de 2019 e meados de 2020, aumentou o número de empregados com salários mais altos — e o maior aumento percentual (14%) foi no escalão acima do 3.000€ líquidos por mês. Consequência estatística: o valor do salário médio subiu neste período, ao mesmo tempo que aumentou o fosso salarial entre as classes e cresceu a pobreza nos escalões de salários mais baixos.

No balanço entre o final de 2019 e o final de 2020, 70% da perda de empregos verificou-se em dois grupos: no dos trabalhadores de serviços pessoais/segurança/vendedores e no dos trabalhadores não qualificados, confirmando a regra de serem os escalões salariais inferiores os mais sacrificados.

Já em 2021, novos números do INE dão conta de uma queda “histórica” do emprego: 79 mil postos de trabalho desaparecidos só num mês (janeiro), o segundo maior valor de sempre, só superado pelos números de maio de 2020, no primeiro choque da pandemia.

As medidas de apoio à manutenção do emprego (na verdade, medidas de apoio às empresas, nomeadamente através do lay-off) terão, mesmo assim, disfarçado temporariamente os efeitos mais duros da pandemia num primeiro impacte. Mas não anularam a tendência para a eliminação de postos de trabalho e destruição de riqueza.

Mesmo recebendo do Estado subsídios a fundo perdido (que serão pagos pela generalidade da massa trabalhadora na forma de dívida pública), muitas das empresas encontraram modo de tornear a lei e despedir trabalhadores por variados processos: invocando planos de reestruturação, recorrendo a despedimentos colectivos, cessação prematura de contratos de trabalho, pressão para rescisões e pré-reformas, recusa em aceitar a prestação extraordinária de apoio à família, represálias sobre os trabalhadores que rejeitam os banco de horas, etc. A tudo isto, somam-se os atrasos e a falta de pagamento de salários e subsídios.

Este panorama, de um modo ou de outro, abarca todos os sectores. Para além dos grande nomes — TAP, Groundforce, Altice, Coelima, Banca, AutoEuropa — a mesma prática prolifera em empresas, grandes e pequenas, da construção civil, serviços de limpeza, serviços de refeições em organismos públicos, hotelaria, restauração, unidades fabris, hospitais… e até no Zoo de Lisboa, que ameaça despedir 40 funcionários.

Estes factos estão longe de dar crédito ao optimismo que Governo e capitalistas arvoram acerca de uma prometida retoma fulgurante da economia, sugerindo com isso um regresso a tempos de vacas gordas que na realidade nunca existiram. Ao contrário, o que fica sinalizado neste último ano é a destruição de meios de produção e de postos de trabalho, muitos deles irrecuperáveis, e a consequente tendência para maiores diferenças sociais, maiores disparidades salariais e maior pobreza das classes mais baixas de trabalhadores.

Num momento em que, com grande afã, as forças parlamentares se preocupam com a criminalização do enriquecimento ilícito — aquele que, de tão escandaloso, dá demasiado nas vistas e gera revolta —, deveria haver quem se preocupasse, ainda com mais empenho, na condenação do enriquecimento considerado lícito. Aquele que, por ser de todos os dias, protegido pela lei, considerado normal, é na verdade o primeiro responsável pela pobreza que atinge a massa trabalhadora e pelas crescentes e inultrapassáveis diferenças sociais.


Comentários dos leitores

Russo Caldeireiro 26/4/2021, 10:08

Os "picos" acima dos 20% que andaram sempre acima dos últimos vinte anos, ou seja os ditos 26% do INE que sempre procura suavizar os números e os 30% da Fundação Francisco Manuel dos Santos, principal acionista do grupo Jerónimo Martins já falecido, e alto responsável por tal pobreza, são apenas parte dos 46 ou 47% que vivem na extrema pobreza e que por esse motivo, o Estado capitalista os isentou de pagar a taxa do IRS.

Quanto ao resto concordo em absoluto com o texto deixando a sugestão que o mais importante é leva-lo à discussão prática, seja por palestras ou conferências presenciais ou por via internet e que daí possa nascer uma combativa corrente sindical que consiga conquistar os sindicatos e mobilizar os trabalhadores para a defesa das suas conquistas e de outras a conquistar.

Um grande abraço


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