O círculo de giz

Editor — 13 Abril 2021

O problema da Operação Marquês não está em ser o megaprocesso que tanto se critica. Está sim no facto de, no desenvolvimento da investigação, ter sido apanhado na rede quem não se pretendia que lá estivesse: o BES e Ricardo Salgado. Enquanto a investigação se limitou a encontrar os tentáculos de um esquema de corrupção, a coisa andou bem: seria mais um caso de abuso de poder e de luta partidária que se prefigurava. O pior foi quando, a partir dos tentáculos, se chegou à cabeça do polvo e se viu que era todo um modo de vida do sistema político-económico-partidário que poderia ficar a nu.

Na primeira linha esteve o jornalismo. Ao longo de sete anos, o jornalismo mostrou que não é pago para pensar, menos ainda para fazer pensar. É uma máquina de moldar aquilo a que depois se chama “a opinião pública”, sem que a opinião do público nisso tenha qualquer papel. Não admira que o jornalismo se tenha sempre focado nos tentáculos da questão. Com a basófia de que não poupa a política e os políticos, dedica-se, na verdade, apenas à pequena política.

A grande política — aquela que controla tudo a partir da sombra, a do capital poderoso — essa é poupada e subtraída dos olhos do público. O jornalismo traçou no chão um círculo de giz em que encerrou os tentáculos da corrupção e a pouca-vergonha de governantes e grandes gestores, expondo-os de mil maneiras aos olhos hipnotizados, como de galinhas, do país. Cuidou, porém, pressurosamente, de excluir do círculo a cabeça do polvo.

Sócrates, pelas suas próprias declarações, transpira venalidade e mentira. Tal como Bava, Granadeiro, Vara, Battaglia e tutti quanti a quem milhões caíram nas contas bancárias. Mas estes, em todo o caso, são alvos fáceis. Então, e Ricardo Salgado? O homem que corrompeu todos aqueles, mais o ministro Manuel Pinho, que burlou meio mundo, que desfalcou empresas, que deu e recebeu luvas, que deixou um calote que todos estamos a pagar, que transferiu milhares de milhões para contas da família — continuando a dizer que nunca corrompeu ninguém — esse continua a suscitar um respeitinho temeroso nos ousados fazedores da “opinião pública”. (*)

Há depois a Justiça. Por natureza, a Justiça tem, diante do crime, um papel moralizador, paliativo — mas não erradica nada. Ataca manifestações do mal, não os seus fundamentos. Não se pode esperar dela nenhum papel curativo nem preventivo. Concede a iniciativa e a dianteira aos criminosos. A corrupção grassa sempre um passo à frente da Justiça. A tão lamentada “falta de meios” é uma condição de existência da Justiça tal como a conhecemos.

A origem primeira da corrupção — um modo de vida social que assenta na exploração, na extorsão, no compadrio, na penúria, na desigualdade, na injustiça social, que estimula o sucesso de uns poucos à custa de todos os outros — nunca poderá ser atacada pelo sistema de Justiça, por mais meios de que disponha. Neste sentido, a Justiça é a outra face da corrupção — o seu contrapeso, mas não o seu antídoto.

O papel fundamental da Justiça é gerir os desequilíbrios instituídos que favorecem as classes dominantes e arbitrar os conflitos de interesses entre elas. A propriedade privada, os direitos que ela confere e a sua consequente moralidade — “enriquecei, explorai, subjugai!” — têm de ser salvaguardadas por um tal sistema de Justiça. Atacar estes pressupostos seria minar os fundamentos da ordem social em que o capital e os seus agentes fazem caminho.

A missão atribuída ao juiz de instrução do processo da Operação Marquês teve como condição de partida, obviamente, resguardar tal ordem de coisas. Deliberadamente ou não, pouco importa, Ivo Rosa foi o instrumento do sistema de Justiça encarregado de proteger de danos, quanto possível, a máquina e o modo de funcionamento do grande capital — personificada, neste caso, na teia do BES e na figura de Ricardo Salgado.

Sócrates, Bava, Granadeiro, Vara, Battaglia, e todos os demais serventuários, nesta sua meia vitória, foram safos do pior porque era preciso safar Ricardo Salgado e o que ele representa.

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(*) Em 3 de agosto de 2014, o Banco de Portugal assumiu o controlo do BES, depois de este ter apresentado prejuízos de 3.600 milhões de euros em seis meses. Em novembro, uma auditoria pedida pelo Banco de Portugal revelou que Ricardo Salgado e seus apaniguados, já depois da decisão de os afastar da administração do BES, fizeram “gigantescas transferências de dinheiro” para offshores, destinadas a “beneficiários desconhecidos”. Cerca de 1.250 milhões de euros terão ido para membros da família Espírito Santo. (Fonte: auditoria da PwC para o Banco de Portugal)

Desde agosto de 2014 até março de 2021, o Novo Banco, que sucedeu ao BES, já custou ao chamado Fundo de Resolução 7.876 milhões de euros, dos quais 6.000 milhões foram empréstimos do Estado. (Fonte: Dinheiro Vivo / Lusa, 09.03.2021)


Comentários dos leitores

José Mário Costa 14/4/2021, 6:14

«Na primeira linha esteve o jornalismo»????

Que investigação própria, e idependente, fez este tipo de "jornalismo"— neste como em todos os processos judiciais mediáticos, antes mesmo de nem ter havido qualquer acusação formal, como foi o "caso" Maddie McCann — que se limita a escarrapachar na praça pública o que que lhe vai sendo "plantado" por parte de quem, sem provas seguras e fundamentadas, o que quer é que as suas "teses" se tornem logo o que só um tribunal pode fazer e cumprindo os básicos direitos dos acusados (sejam eles quais forem)?

Isto já para nem falarmos da outar vertente deste tipo de "jornalismo": os "especialistas" instantâneos de tudo e de nada, desde as vacinas do covid ao tiro-ao-alvo ao juiz Ivo Rosa...

Leonel Lopes Clérigo 14/4/2021, 9:47

Para além dos pormenores das suas "53.000 páginas" e dos "13,5 milhões de ficheiros informáticos", a OPERAÇÃO MARQUÊS" arrisca-se (se a deixarem...) a ser um "LIVRO ABERTO", um RAIO X duma Burguesia dependente, rasca e desmiolada que em vez de CRIAR RIQUEZA para o seu PAÍS anda a SACAR às ESCONDIDAS a pouca que há (mais a DÍVIDA...) e em proveito próprio.
Se ao menos o BURGUÊS TUGA andasse no GAMANÇO para fazer "acumulação" e INVESTIR na PRODUÇÃO de VALOR (de "Bens transacionáveis" como gosta de "cientificamente" referir...), talvez se pudesse até dizer: que se lixe, "do mal o menos..."
É assim a vida inevitável das SOCIEDADES SUBDESENVOLVIDAS...como a nossa: "casa onde não há pão..."

afonsomanuelgoncalves 17/4/2021, 13:14

Independentemente de qualquer partido ou governo, a política da burguesia é a corrupção organizada.


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