Ponto de mira
A igualdade não está a passar por aqui
Editor — 11 Março 2021
Não será seguramente por falta de declarações que as mulheres não alcançarão a igualdade. No passado 8 de Março choveram comoventes apoios à causa, do secretário-geral da ONU, António Guterres, da presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, até inumeráveis reportagens e testemunhos na comunicação social. Não faltou mesmo a argúcia do grande comércio, amigo da mulher-consumidora, que lançou campanhas promocionais de electrodomésticos ou produtos de beleza.
Ridículo à parte, destacaram-se os votos genéricos em prol da igualdade e da liberdade, com lugar de relevo para os exemplos de mulheres em cargos públicos, em postos de liderança e na chefia de empresas de sucesso. Cá para baixo, é claro, ficaram as referências a esse “detalhe” que são as mulheres assalariadas, diluídas no oceano “das mulheres”. Uma declaração da CGTP relembrando as discriminações no trabalho não bastou para contrariar o pendor geral da conversa.
Tamanha fartura evocativa é de desconfiar. E tamanha generalidade na abordagem do tema mostra que a causa está capturada pelos movimentos das camadas sociais dominantes, que secundarizam e arrastam consigo as classes trabalhadoras e populares.
Dizendo isto, não pretendemos desprezar ou menorizar nenhum passo, mínimo que seja, no sentido da igualdade e da liberdade das mulheres de qualquer classe social — pela razão simples de que todas elas são vítimas de discriminação em relação aos homens das suas respectivas classes sociais.
Mas as mulheres das classes trabalhadoras, empurradas para o nível mais baixo da escala social, são discriminadas não só face aos homens da sua própria classe, como ainda, por maioria de razão, em relação a todos os estratos sociais burgueses. São duplas vítimas. Reclamar igualdade e liberdade para estas mulheres, portanto, não representa o mesmo que para aquelas.
Na origem, o Dia Internacional da Mulher esteve estreitamente ligado às lutas das classes trabalhadoras, ao movimento socialista e comunista e ao direito de voto igualitário. Em 1909, socialistas norte-americanas comemoraram o dia da mulher, evocando uma greve de operárias da indústria de vestuário de Nova Iorque por melhores salários e condições de trabalho. Em 1910, numa conferência de mulheres promovida pela Internacional Socialista, a comunista alemã Clara Zetkin propôs a comemoração anual de um dia da mulher, a primeira das quais teve lugar no ano seguinte.
Em 8 de Março de 1917 (23 de Fevereiro no antigo calendário russo) irrompeu em Petrogrado uma greve de operárias têxteis que marcaria, com outros movimentos grevistas, o início da revolução russa. O 8 de Março passou a ser dia feriado na URSS e nos países do Leste europeu. Só em 1975 a ONU adoptou a data como Dia Internacional da Mulher.
Como em qualquer movimento social, também no movimento feminista — para usarmos um termo que hoje tende a englobar indistintamente lutas de espécie e de natureza social diversas — se coloca o problema de saber quem lidera e quem é liderado. Claramente, nas últimas décadas, um movimento feminista “genérico”, sem distinções de classes, absorveu (e em grande parte anulou) o feminismo combativo, de classe, que as lutas de massas, o socialismo e o comunismo tinham forjado. Na realidade, esse é um sinal da perda de independência política dos movimentos das mulheres trabalhadoras e, portanto, do domínio das classes burguesas e pequeno burguesas sobre o movimento feminista.
Debaixo de uma aparente comunidade de interesses “femininos” esconde-se um crescente fosso social. A decadência do capitalismo mundial, agora potenciada pela pandemia, em vez de atenuar, agrava quer as desigualdades de que são vítimas as mulheres em geral, quer as desigualdades entre as mulheres de diferentes classes sociais.
Nos 19 países do euro, com perto de 350 milhões de habitantes, há 18 milhões de profissionais nos serviços de saúde e assistência social; destes, 3/4 são mulheres. Proporção idêntica nos serviços de educação (1). São sobretudo mulheres, na maioria assalariadas, quem cuida de doentes e de jovens, em condições de falta de meios e de esforço pessoal que mal se conhecem. Some-se a isto a assistência reforçada prestada em casa às famílias, o despedimento ou a quebra de salários por lay-off.
Este quadro confirma e reforça o que já é sabido: os direitos formais, quando os há, não se traduzem numa efectiva igualdade em relação aos homens. Com um sublinhado: tudo isto é incomparavelmente mais grave para as mulheres trabalhadoras. Não admira que tanto Guterres como Lagarde prevejam um retrocesso que vai durar pelos próximos anos. (2)
A luta das mulheres trabalhadoras pela igualdade não é apenas um movimento entre outros. Trata-se da maioria da espécie humana, maciçamente proletarizada e a suportar níveis de exploração piores que os dos homens da mesma condição. A libertação das mulheres não é mais um auxiliar da luta de massas: a entrada das mulheres em pleno na luta social transformará por completo as capacidades e as perspectivas do combate pelo progresso e pelo socialismo.
Mais do que uma simples questão de moralidade ou de solidariedade, a participação das mulheres trabalhadoras na luta social e política, com voz própria, é determinante para reabilitar o sentido classista das lutas sociais. Pela posição que ocupam na base da escala, o seu combate pela igualdade constitui uma alavanca capaz de revolucionar, não apenas as relações homem-mulher, mas toda a sociedade contemporânea.
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(1) C. Lagarde, 8.3.2021, DN/JN/Dinheiro Vivo
(2) C. Lagarde, idem. A. Guterres, 8.3.2021, ONU News: “As vidas das mulheres foram destruídas e os seus direitos erodidos (…) as consequências vão durar muito mais do que a pandemia.”