Imperialismo suicidário

António Louçã — 5 Março 2021

O imperialismo sacrifica milhões de seres humanos para que uma minoria possa prosperar

Os acordos internacionais para distribuição das vacinas passaram inicialmente por ser um parêntesis de racionalidade no meio do salve-se quem puder globalizado. Em breve, porém, as compras de vacinas por fora dos acordos vieram desenganar os mais crédulos. O imperialismo continua a ser um sistema que, no limite, aceitará sacrificar biliões de seres humanos para que uma minoria possa prosperar — com a particularidade de que, neste caso, a mentalidade genocida pode revelar-se autodestrutiva também para a minoria privilegiada.

Quando as vacinas da AstraZeneca não compareceram nos prazos acordados com a União Europeia, as desculpas de mau pagador referiam-se principalmente a capacidades de produção insuficientes (que no entanto já deviam ser conhecidas no momento da assinatura dos acordos). Quando começaram a aparecer vacinas da AstraZeneca na República Checa, que não lhe tinham chegado por via da distribuição europeia, a multinacional farmacêutica apressou-se a alegar que deviam ser vacinas contrafeitas, porque nada tinha vendido à República Checa por fora dos acordos europeus. Quando o Governo fascistóide da Hungria declarou provocatoriamente que não vai limitar-se a esperar a distribuição europeia, muitos podem ter encolhido os ombros, porque isso era Orbán a ser Orbán. Mas, se a própria Alemanha assume que está a envidar diligências para se abastecer de vacinas, à margem dos mecanismos europeus, isso já parece muito mais Merkel a ser Orbán.

Há portanto um internacionalismo burguês para garantir uma certa distribuição de vacinas, combinado com um nacionalismo sanitário para garantir que os mais ricos têm o que falta aos outros. E, se isto é assim, dentro da União Europeia, o que diremos à escala global: há países como o Canadá que têm doses para vacinar várias vezes a sua população, enquanto a maioria dos países africanos ainda nem começaram qualquer campanha de vacinação. Há uma desproporção gritante entre o número de vacinas que têm os EUA ou as potências europeias e o que têm os países africanos, latino-americanos e grande parte dos asiáticos.

Israel foi o país que mais rapidamente vacinou a sua população e depois ficou com milhões de doses. Desses milhões, entregou umas irrisórias 5.000 nos territórios palestinianos ocupados, pelos quais é responsável como potência ocupante; e depois pôs-se a distribuir prodigamente centenas de milhares pelas monarquias do Golfo, para consolidar o suborno desses regimes fantoches na campanha contra o Irão. Enquanto os palestinianos morrem de covid sem qualquer protecção, a pilha de doses sobrantes em Israel é usada para a preparação política da próxima guerra no Médio Oriente.

Mas há aqui um factor que ninguém pode controlar. Se um centésimo da humanidade for vacinada e, por agora, ficar a salvo da pandemia, o novo coronavírus continuará a disseminar-se rapidamente pelo resto da humanidade e, nesse enorme caldo de cultura, irá produzindo, em vertiginosa aceleração, novas estirpes cada vez mais refractárias a qualquer vacina. E essas estirpes voltarão, dos guetos de pobres, para assombrar os guetos de ricos. Os muros do Texas ou da Cisjordânia, os arames farpados de Ceuta ou das fronteiras gregas, serão impotentes para proteger os genocidas, ou os que vivem à sua volta.

Quem quiser condenar os pobres e salvar os ricos estará, estupidamente, a criar condições para uma bola de neve pandémica, que pode tornar-se demasiado grande para ser travada e que atingirá, como um boomerang, os seus responsáveis políticos e económicos.

O nacionalismo sanitário e genocida não tem, em si mesmo, nada de novo, a não ser o “pequeno detalhe” de uma situação objectiva profundamente mudada. Ele reflecte a mesma cegueira de que o capitalismo tem vindo a dar provas a respeito da destruição ambiental: desde que, por agora, o quintal europeu continue verdejante, pouco importam as alterações climáticas, o aquecimento global, a subida dos oceanos, a inundação das orlas costeiras, a desertificação das florestas, a poluição global, enfim, os fenómenos que são outros a sofrer e que os países mais ricos só ficam a conhecer de forma distante e amortecida.

Mas a cegueira ideológica gerada pelo capitalismo, por muito reconfortante que seja aqui e agora, não altera a realidade objectiva: o mundo afunda-se em lixo e a humanidade vai-se infectando a si própria. Se a filosofia que justifica tudo isto é “antes mortos que vermelhos” (better dead than red), então há que reconhecer que vamos no caminho desejado pelos seus mentores.


Comentários dos leitores

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 13/3/2021, 20:21

Um artigo excelente.


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