Um tributo pago ao passado colonial

Editor — 17 Fevereiro 2021

Se não fosse o grito de alma de Mamadou Ba, o funeral do tenente-coronel Marcelino da Mata, falecido há dias com 80 anos, seria mais uma cerimónia de homenagem a um “herói nacional”, apagando os crimes de guerra do personagem e da guerra colonial. A sonora denúncia de Mamadou Ba — “Marcelino da Mata é um criminoso de guerra que não merece respeito nem tributo nenhum” — teve o mérito de não deixar passar em claro as honras prestadas a um agente especialmente cruel do colonialismo, mostrando a face do regime político e da instituição militar, e obrigando as forças de direita a virem a terreiro revelar o que lhes vai na alma.

Marcelino da Mata, guineense de nascimento e colaborador do colonialismo português por opção, integrou uma força africana de “contra-terrorismo”, os Comandos Africanos, liderada nomeadamente por Spínola e Alpoim Calvão. Era uma tropa que actuava na Guiné-Bissau e nos países fronteiriços, encarregada de operações especiais “irregulares”, com carta branca para cometer todos os crimes contra os combatentes do PAIGC e contra as populações suspeitas de os apoiar. Todos os processos disciplinares contra ele levantados foram sistematicamente abafados pelas chefias militares. Sabendo-se protegido, Marcelino gabou-se, enquanto pôde, das barbaridades que cometeu — e foi assim que se tornou o militar mais condecorado do Exército.

Impedido de regressar à Guiné-Bissau depois da independência, continuou a alinhar com as forças mais reaccionárias portuguesas após o 25 de Abril. Exilou-se na Espanha franquista e só regressou após o golpe de 25 de Novembro. Continuou a ser um colonialista e um fascista convicto. Numa entrevista dada em 2015, disse que O Diabo era o melhor jornal português e acusou “antigos colegas” de serem “cobardes”, despeitados com as suas condecorações.

É este personagem que o CDS veio a terreiro defender, acusando Mamadou Ba de “desprezar os principais referenciais da nossa cultura” e fazendo de Marcelino “um dos maiores heróis do nosso tempo”. Igualmente delirante é a declaração do Chega, defendendo Marcelino como “um exemplo de respeito pelos princípios de uma democracia constitucional”. Outros relembraram o homem por ele acreditar no “Portugal do Minho a Timor” e ser “o último cruzado de Império”. Há mesmo quem fale em levar o “herói” para o Panteão. Eis, portanto, às claras, os “referenciais” da extrema-direita.

Por este andar, vão ter de pedir contas a todos os militares democratas que se insurgiram contra a promoção de Marcelino da Mata a major, em 2018. Entre eles, o presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço, que, em artigo no Público (19.07.2018), disse que “A promoção de Marcelino da Mata, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril” — precisamente por ter cometido crimes de guerra na Guiné.

A presença do presidente da República, dos altos comandos militares e da Igreja católica no funeral, mesmo sem honras militares, foi um tributo pago ao passado colonial. Mostra que nenhuma fronteira foi traçada entre o regime actual e os crimes coloniais. Hipocritamente, o regime incorpora nos seus pergaminhos tanto a independência conquistada pelas antigas colónias (que remédio!), como a guerra criminosa que foi movida contra os movimentos independentistas. Ora, como uma coisa é a negação da outra, é inevitável que todo o sarro colonialista que permanece na sociedade portuguesa fermente e venha ao de cima — e com ele todas as taras racistas alimentadas em 500 anos de império.

As classes dominantes portuguesas não toleram, ainda hoje, a derrota que africanos “de pé descalço” — com inteligência e clareza política, organizados e dispostos a todos os sacrifícios — infligiram ao colonialismo, destroçando a caranguejola da “nação pluricontinental”. E, mais que isso, provocando de caminho a queda do regime na própria “metrópole” e reduzindo a burguesia portuguesa à sua real condição: a de parente pobre da Europa.

Conta-se que os três lusitanos aliciados pelos romanos para assassinar Viriato, quando reclamaram a sua paga, receberam em resposta: “Roma não paga a traidores”. Marcelino da Mata, que fez carreira a trair o povo guineense, foi sempre acolhido, protegido e pago por Lisboa, melhor ou pior. O cinismo romano, ao menos, afectava algo de nobre.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 19/2/2021, 15:39

Mamadou Ba em Portugal e Hasel em Espanha apareceram como relâmpagos que podem incendiar uma floresta e mostraram aos seus concidadãos que o medo os torna reaccionários. De facto a ladaínha de lamentações e de pequenos gestos de protestos conduziram estes países a um atraso social e cultural inimaginável para o nosso tempo europeu. A prática revolucionaria deu lugar ao marasmo folcolórico que foi muito festejado no pós 25 de Abril e convenceu muita gente que a liberdade era definitiva e imparável. Mamadou Ba mostrou-nos finalmente, com audácia e coragem, que o fascismo vestiu politicamente a pele democrática mas a sua ideologia está forte e ameaçadora,

Altamiro Dias 20/2/2021, 15:08

Conheci este homem pessoalmente porque cumpri o serviço militar no Regimento de Comandos, entre 1977 e 1979.
Se a memória não me atraiçoa tinha na altura a patente de Alferes e corria nessa Altura no Regimento de Comandos quando ele ia levantar os géneros alimentares que levantavam todos os militares comandos casados quer estivessem no ativo ou não e corria na altura que era o militar com as mais elevadas condecorações ...
Quando questionado por um militar no ativo porque ele matava crianças, ele respondeu crianças choram e despertam o interesse do inimigo !!!!!
Ouvi em determinada altura da minha juventude que não tenho presente quando que ele entrava no Senegal e desventrava mulheres gravidas!!!
Parabéns Manuel Raposo por este artigo !!!
ADias


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