Vacinas covid: alto negócio e arma política

Manuel Raposo — 14 Fevereiro 2021

Países ricos primeiro, depois os pobres. Prazos de vacinação: verde escuro-final de 2021, verde claro-meados de 2022, laranja-final de 2022, vermelho-de 2023 em diante. Fonte The Economist

Já foi dito que as crises ditas “naturais”, mesmos os cataclismos imprevisíveis, põem a nu as fragilidades  das sociedades que atingem. A crise sanitária, social, económica desencadeada pelo coronavírus é disso exemplo, com a agravante de a erupção viral ser de há muito previsível, se não na sua forma precisa, pelo menos na probabilidade de ocorrer. Mas há outra face das sociedades actuais que fica a descoberto: a miserável competição entre as principais potências capitalistas mundiais na corrida às vacinas, quer pelos lucros colossais proporcionados às farmacêuticas, quer pela busca de vantagens políticas.

Todas as taras do capitalismo imperialista ganham, nas circunstâncias actuais, dimensões de inumanidade e de violência que só costumam ser atribuídas à guerra aberta.

Desde o rebentar da crise sanitária ficou patente a inadequação (por sub-dimensionamento e sub-financiamento) dos sistemas públicos de saúde, mesmo nos países considerados mais evoluídos, bem como a inutilidade dos serviços de saúde privados para responder à emergência. O desleixo do poder político pela saúde pública ficou patente também no desprezo com que foram ignoradas as previsões de que um surto epidémico teria toda a probabilidade de ocorrer.

Os últimos meses vieram acrescentar mais uma novidade: a desenfreada competição em torno das vacinas. Apesar de um número considerável de países ter acordado uma parceria (designada Covax, sob a égide da Organização Mundial da Saúde) — que, cheia de boas intenções, pretendia apoiar a investigação, a produção de vacinas e em seguida a sua distribuição em pé de igualdade por todo o mundo —, apesar disso, a competição tomou a dianteira logo que as primeiras vacinas foram descobertas.

O acordo foi útil às grandes farmacêuticas capitalistas enquanto proporcionou o intercâmbio de dados científicos que aceleraram a concepção das vacinas. Foi-lhes igualmente útil o gigantesco financiamento por parte dos Estados feito, obviamente, com dinheiros públicos. Mas qualquer acordo ou promessa de igualdade de tratamento se tornou letra morta a partir do momento em que as vacinas foram uma realidade: aí imperou o critério de sempre — o negócio. Se alguém pensou que o financiamento público iria defender o interesse público, desenganou-se rapidamente.

A par disto, por parte dos Estados mais poderosos a disputa pelas vacinas visa objectivos de outra ordem: assegurar supremacia sobre os competidores. Quem mais cedo se libertar da pandemia e retomar a “normalidade” económica pode esperar ganhar vantagens decisivas. É isto que leva, por exemplo, os EUA a um verdadeiro açambarcamento de vacinas, em detrimento do resto do mundo — acabando por penalizar sobretudo o mundo mais pobre. O mesmo fez o Reino Unido com as vacinas produzidas no seu território, colocando em causa os planos de vacinação da União Europeia.

Também a desconsideração das vacinas russas e chinesas pela UE é resultado evidente de uma política que visa beneficiar as farmacêuticas dos “aliados ocidentais”. Mas nem isso impediu a UE — depois de ter adiantado milhões de euros às farmacêuticas — de ser colocada em plano secundário, a reboque das jogadas de Boris Johnson, de Trump e agora de Biden.

A comprovada incapacidade das principais farmacêuticas capitalistas de produzirem os volumes necessários de vacinas deveria levar, em boa lógica, a descentralizar a produção por diversos países. Mas contra isso levanta-se o interesse dessas empresas em lucrar o mais possível — o que acontece quando vendem produto acabado e… quando ele escasseia.

A emergência sanitária justificaria igualmente a supressão das patentes e a produção em larga escala, livre de ónus, por todos os laboratórios habilitados do mundo. Mas isso não ocorre porque colide, uma vez mais, com os interesses privados dos gigantes farmacêuticos, centrados até agora em dois países: EUA e Reino Unido.

A monstruosidade de tudo isto ganha ainda mais relevo diante de alguns dados divulgados pela OCDE. (1)

Em 2020, nos países mais pobres, 100 milhões de pessoas viram-se relegadas para uma situação de pobreza extrema, e em 2021 acontecerá o mesmo a mais 150 milhões. 270 milhões caíram no patamar da fome.

Enquanto nos países de maiores rendimentos as medidas de protecção social para fazer face à pandemia atingiram 695 dólares per capita, nos países mais pobres foram aplicados apenas 4 dólares per capita.

Os países ricos reuniram 14 biliões (milhões de milhões) de dólares para suportar as suas economias, mas recusaram o perdão das dívidas dos países africanos, no montante de 100 mil milhões, o que representa 1/140 daquele valor.

As desigualdades com efeitos a prazo também se acentuam. Nos países pobres foram perdidas em média 16 semanas de escola, enquanto nos países ricos se perderam 6 semanas.

A discriminação na distribuição das vacinas é mais um aspecto desta guerra. Até agora, 94% das vacinas foram aplicadas nos países mais ricos (com cerca de 20% da população mundial), e dez de entre eles ficaram com 55%.

Os perto de 100 países mais pobres, com 80% da população mundial, deveriam (segundo o plano Covax para 2021) receber 2000 milhões de vacinas, financiados por 5000 milhões de dólares — mas apenas 2000 milhões de dólares foram reunidos para o efeito. Mesmo que o plano fosse cumprido, apenas 20%, no máximo, da população destes países poderia esperar ser vacinada, enquanto nos países que se auto-financiam 50% da população pode ser vacinada a curto prazo. Ao ritmo actual, na melhor das hipóteses, só em 2024 se poderá esperar que as populações dos países mais pobres estejam todas vacinadas. (2)

A revista The Economist confirma, por seu lado, estes factos e acrescenta algumas afirmações interessantes. A “diplomacia da vacina” determinará quais os países que terão acesso às vacinas nos próximos meses. A produção representa o maior obstáculo, “na medida em que muitos países desenvolvidos encomendaram previamente mais doses do que precisam”. As encomendas previstas no acordo Covax demorarão a chegar aos países pobres “especialmente se a produção e a distribuição para os países mais ricos deixar para trás as datas de entrega aos países pobres”. (3)

Do conjunto de tudo isto, resultam evidências impossíveis de esconder. O interesse privado das farmacêuticas, atrás do lucro máximo, converge com o interesse das maiores potências capitalistas em gerirem o curso da pandemia por razões de hegemonia. A escassez de vacinas está a ser usada como uma arma dos países imperialistas em seu proveito e nas disputas entre eles. Nem por um momento o capitalismo mundial vai perder o tino e conceder aos países pobres aquilo que até agora nunca lhes concedeu: perdão de dívidas, dinheiro a fundo perdido, ou igualdade de tratamento — porque é essa a condição para os manter dependentes. Todo o capital que o mundo imperialista resolver aplicar no combate à pandemia passa por um rigoroso cálculo de ganhos e perdas, como qualquer investimento. Morra quem morrer.

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(1) Global crisis, unequal problems

Uma catastrófica falha moral…, Jorge Moreira da Silva, Diário de Notícias, 11.02.2021

(2) A OCDE quer dar sentido humanitarista aos seus apelos para que o mundo rico ajude o mundo pobre. Mas não consegue esconder o verdadeiro interesse do capitalismo mundial: manter os negócios em alta. Jorge Moreira da Silva, que desde 2016 integra a Directoria da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE, fez contas e apontou o prejuízo para a economia mundial que resultará do “nacionalismo das vacinas”. Diz ele, no artigo acima citado, que o atraso na vacinação nos países em vias de desenvolvimento “produzirá um prejuízo de 9,2 biliões de dólares na economia mundial”, ao passo que “o investimento de 27 mil milhões de dólares, necessário para o reforço dos sistemas de testagem e de tratamento nos países mais pobres, terá um retorno de 166 vezes na economia global”.

(3) The Economist, 27.01.2021


Comentários dos leitores

M. Teresa Alves da Silva 16/2/2021, 16:25

A propósito do tema deste artigo e na sequência da constatação incontestável que a "emergência sanitária justificaria a supressão das patentes e a produção ( de vacinas) em larga escala,livre de ónus, por todos os laboratórios habilitados do mundo" (sic) tive acesso a um artigo do jornalista Filipe Santos Costa (1) que importa referir e salientar alguma da informação disponibilizada.

O artigo descreve a evolução da aplicação das diferentes vacinas já existentes (dez) e sua utilização em todo o mundo. Face ao fracasso do arranque da campanha de vacinação na UE ser evidente, levanta importantes questões.
A questão mais central é porque razão a UE , insiste apenas nas vacinas ocidentais, apesar das dificuldades de produção desses fornecedores.
A UE , tendo centrado na Comissão, a negociação e compra conjunta das vacinas, limitou a sua negociação a oito fornecedores, todos de origem europeia ou norte americana.
E, apesar de já ter reconhecido o falhanço do arranque do processo e consequentemente a respectiva programação e objectivos temporais, por incumprimento dos fornecedores , não há referência a outras vacinas ( russa e chinesa) fora do espaço económico e politico ocidental.
A envolvência da Comissão , em negociação e aquisição conjunta, foi fundamentada , pela Comissão,como uma estratégia conjunta evitando que os 27 membros entrassem em competição de mercado, o que iria beneficiar os países membros mais ricos, sendo que os mais pobres, como Portugal,ficariam em segundo plano. A lógica da distribuição ,quantidades por países membros , proporcional na medida dos fornecimentos, os países serem abastecidos de acordo com a dimensão da população residente, foi igualmente aceite como principio adequado à severidade da pandemia.
Mas, podendo já ser analisado o caso português, que nas primeiras semanas estava a par com os restantes estados membros, é actualmente o quarto pior país da UE, no número de vacinas administradas diariamente , por cada 100 cidadãos, e atrás da média comunitária, no total do numero de vacinas aplicadas , por cem cidadãos.
E , estes números, são devido ao incumprimento dos calendários de fornecimento das vacinas, das entregas às autoridades sanitárias portuguesas, de acordo com as autoridades portugueses.

Refere o artigo, que há , no entanto, países comunitários, como a Hungria e a Alemanha, que de forma pouco evidente ainda, mostrou disposição a recorrer à vacina russa.
E, então é evidente ,a opinião publica europeia interrogar-se ....porquê as vacinas produzidas na China e na Rússia estão fora da negociação da UE ?
Será que é uma questão de eficácia e segurança sanitária?
Ou será que é uma questão cientifica? Ou será "divergência" politica??

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(1)Jornal ECO 14 Fevereiro
Jornalista Filipe Santos Costa
Título:
Rússia China têm milhões de vacinas contra covid. Porquê é que a UE não as quer?

afonsomanuelgoncalves 16/2/2021, 18:18

A lei da concorrência no capitalismo não recorre à moral na sua actividade mercantil, mas no caso de uma pandemia generalizada julgam os incautos jornalistas e o povo em geral que a solidariedade universal deve prevalecer sobre a ganância do lucro. No caso das guerras que massacram os povos e destroiem cidades inteiras, tudo isso é feito em nome dos direitos humanos contra os ditadores que oprimem os seus povos. Um belo discurso dos agressores que defendem a liberdade e a democracia e agora numa situação mais complexa queixam-se da "incapacidade" das rentáveis empresas de produtos farmacêuticos.


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