Ponto de mira
Presidenciais. O regime ao espelho
Editor — 22 Janeiro 2021
Domingo que vem, a imagem do regime vai ficar marcada por dois traços principais: o nível da abstenção, que ameaça atingir valores recorde, e os votos que a extrema-direita conseguir alcançar.
Na abstenção podem incluir-se mil razões diferentes, desde o mero desinteresse “pela política” à convicção de que o voto nada vai mudar e não vale o esforço. Mas no conjunto, à parte razões particulares, o facto de 60 ou 70 por cento dos eleitores virarem costas às urnas significa, sem margem para dúvidas, que o regime sofre de doença grave, se não incurável. Significa que uma larga maioria de cidadãos não vê nas instituições, no poder, os instrumentos para modificar, conduzir, governar a sua vida.
A democracia que está instituída, há décadas, é vista pela massa do povo como um monopólio dos poderosos, dos donos do país, para benefício próprio — no uso dos dinheiros públicos, na distribuição de tachos, na administração da Justiça, na prioridade sempre dada aos interesses privados, na penúria do Ensino, da Saúde ou dos apoios sociais, na constante falta de meios para tudo o que respeite à colectividade.
Talhado à medida do capital, dos seus tentáculos e dos seus agentes, esse monopólio retira à massa trabalhadora e ao povo qualquer possibilidade de influir nas decisões políticas, a não ser confirmar os deputados, os governantes ou o chefe de Estado de turno. A percepção desta realidade degradada, com mais de quarenta anos, é o pano de fundo da abstenção.
Ao não atacar o problema deste ponto de vista — isto é, ao não pôr radicalmente em causa o próprio sistema político e o sistema de poder, ao enrolar-se em estéreis propósitos de remedeio dos males de fundo — a esquerda com expressão política (que é a esquerda do regime) fracassa e deixa campo livre à extrema-direita. É este o nó.
Sem oposição de esquerda à altura, a demagogia fascistóide tem campo aberto e surte efeito com poucos meios: a extrema-direita apenas finge atacar os males do regime apontando com estrondo as suas chagas superficiais, mas evita tocar nas suas raízes sociais, económicas, políticas. Não é o regime que ela quer derrubar, mas sim apenas os figurantes que estão hoje no poder — contra os quais sobram razões de queixa.
Sem linha política propriamente dita, sem programa que se veja, tem bastado à extrema-direita vociferar contra o poder instalado, trazendo para a campanha eleitoral as discussões de taberna próprias das tribos do futebol. Os votos que assim ganhar serão, também eles, uma amostra da degradação a que chegou o regime político e as suas instituições — bem como, claro está, da consciência política da população.
A extrema-direita conta com a escória marginal da sociedade — mas também com os ingénuos, com os desesperados, com os que procuram uma saída política para os males do regime, para as desigualdades que ele reproduz, e não a encontram nas propostas da esquerda institucionalizada. É com essa amálgama de gente e de interesses diversos que a extrema-direita aspira chegar ao poder. Com uma única finalidade: tomar o lugar dos homens que hoje governam o país, para serem os seus homens a gerir os mesmíssimos negócios do capital, apenas com mais à vontade e brutalidade. A tanto se resume a sua ambição “renovadora”.
Perante isto, se o candidato da extrema-direita vai ficar em segundo ou terceiro lugar, como o campeonato das sondagens sugere, pouco importa. Em qualquer dos casos, o panorama político e partidário será abalado. Não só à direita, que terá de se conformar à nova realidade — como de resto o PSD já começou a fazer, com o balão de ensaio que foi o acordo governativo nos Açores. Mas também, e sobretudo, à esquerda.
A esquerda do regime não poderá deixar de tirar lições sobre a sua opção pela “política de melhoramentos”, que, apesar de ganhos pontuais aqui ou ali, se mostra incapaz, perante as novas circunstâncias, de travar a deriva para a direita, mesmo entre sectores populares.
A esquerda revolucionária, sem expressão visível, tem igualmente de abrir os olhos para os factos: sem um programa próprio, sem unidade, não existirá politicamente e os acontecimentos passar-lhe-ão por cima. Esse programa é o contraponto à extrema-direita de que o país precisa.
Comentários dos leitores
•Chico da Emilinha 22/1/2021, 16:53
OBRIGADO
chico da EMILINHA
•jml 23/1/2021, 12:43
Tendo algumas divergências com o texto, no entanto concordo inteiramente com o seu último paragrafo e até apelo para que o Jornal Mudar de Vida crie as condições para que rapidamente nos possamos encontrar para ultrapassar o que até aqui nos tem dividido e elaborar o PROGRAMA que de facto se torne no
CONTRAPONTO ao capitalismo que a classe trabalhadora precisa.
Um grande abraço para todos
JMLuz
•AP 23/1/2021, 18:03
Uma análise lúcida com a qual concordo.
O capitalismo agora, mais que nunca, demonstra a sua incapacidade para responder às necessidades das populações. As elites já o sabem, as populações sentem-no sem perceberem a razão da falência do sistema. Perante o descrédito do sistema capitalista e o esgotamento das soluções de mercado, a resposta da direita é um apelo ao sentir, ao medo da mudança, ao medo de tudo o que é diferente, e ao mais diversos monstros que ensombram o sistema. Esta ameaça latente, dizem, trará apenas uma pioria das condições de vida, uma destruição do (pouco) que ainda há.
Esta mensagem é a mensagem da direita rentista encabeçada pelo Trump, Johnson, Le Pen, (e pelas suas versões periféricas, e.g., Bolsonaro, Ventura). Não é uma proposta positiva no sentido de propor algo concreto, é uma política de negação.
Se a "esquerda" não optar por um projecto alternativo que, de facto, apresente uma proposta de organização económica concreta e que responda às necessidades das populações, está condenada ao fracasso. As questões socio-económicas centrais têm de ser repostas em cima da mesa de forma concreta. Entrar no jogo negativo do apelo ao medo do fascismo é um beco sem saída.
Dado o vazio que o sistema capitalista gerou, o momento é de propostas concretas.
•afonsomanuelgoncalves 25/1/2021, 13:21
Os reultados eleitorais puseram a nu o país eabalaram toda a estrtura política dominante Bastou aparecer no cenário político existente um aventureiro descabelado para se perceber aquilo que a chamada esquerda e extrema esquerda nunca entederam, mas o povo português desde há muito que entende e resolveu mal teve uma oportunidade passar uma certidáo de óbito ao decrépito revisionismo português. Do ponto de vista das candidaturas parece evidente que o candidato do PCP apesar de sua ortodoxia constitucional foi o mais sólido e o menos vazio na campanha eleitoral, mas amarrado como está ao partido nao podia alongar-se mais. Quanto à extrema esquerda conclui-se que ela não existe e tenho dúvidas que alguma vez tivesse existido, embora nos anos que se seguiram à grande Revolução Russa, o maior acontecimento da humanidade , o seu entusiasmo se tivesse mantido até ao golpe de estado desencadeado através de um Congresso onde se apresentou um relatório fascista com todos os partidos comunistas europeus a assobiarem para o lado. O legado da revolução foi vilipendiado e ninguém reparou nisso.
•Leonel Lopes Clérigo 26/1/2021, 11:37
Julgo que o texto acima do PONTO de MIRA assim como os comentários de AP e de Afonso Gonçalves (AG), saem hoje fora do comum da análise pachorrenta à nossa decrépita Sociedade. E julgo também que isso teve uma pequena ajuda: o "ACTO ELEITORAL" que, de alguma forma, empurrou as "consciências" - como aflora o comentário de AP - para a fuga ao vazio das ficções propondo que se passe a enfrentar o CONCRETO: como ele diz, "...o momento é de propostas concretas".
A crise SOCIAL que atravessamos parece não ser "vulgar": ela, sobretudo, mostra já a incapacidade do Capitalismo em responder às diferentes "adversidades" que possam surgir ao virar da esquina do TEMPO. A capacidade PRODUTIVA de que hoje já se dispõe, não vai no sentido certo: está bloqueada pelos mesquinhos interesses do LUCRO do CAPITAL e isso tornou-se agora mais que evidente na SAÚDE: a contradição estalou entre o PRIVADO e o SOCIAL mostrando que LUCRO e BEM-ESTAR não jogam BEM.
Nesse sentido, o comentário de A.G. parece repor coisas no seu lugar: o Abrilismo balofo - ou seja, da "palavra feita morta", sem "concreto" (esquecendo-se há muito do D do DESENVOLVIMENTO) - também morreu e as organizações que ainda o "expressam" sem mais, devem-se ir preparando para a sua "hospitalização". Como foi possível uma campanha de "debates", onde a ESQUERDA não mostra uma pequena luz que ilumine as consciências lusas ignorantes acerca os Reais PROBLEMAS do seu PAÍS? Depois não nos queixemos dos Aventureiros "revivalistas" à CHEGA, eles também muito mais mortos que vivos. Como dizia o outro: no reino dos cemitérios, quem manda são os mortos.
•Leonel Lopes Clérigo 26/1/2021, 11:54
Uma pergunta:
onde se pode encontrar o número de "visualizações" que parece, entretanto, ter desaparecido?
•mraposo 26/1/2021, 13:39
Obrigado pelo alerta. Vamos reparar o lapso.