Um auto-retrato da direita
Manuel Raposo — 20 Janeiro 2021
Quatro dias depois da invasão do parlamento norte-americano por uma multidão de desordeiros fascistas açulados pelo ainda presidente Trump, Paulo Portas, comentando na TVI os acontecimentos, comparou os manifestantes a “okupas” sem respeito pela “propriedade alheia”; e, esticando os paralelismos, exclamou: “Eu só pensei na Revolução Francesa, quando vi aquilo”.
A coisa poderia ser levada para o ridículo. Por exemplo, explicando a PP que o Capitólio não é bem “propriedade alheia”, ficando logo aí desajustada a ligação com os “okupas”. Ou lembrando-lhe que a Revolução Francesa, ainda que longínqua, abriu caminho à burguesia industriosa de que PP é embaixador a troco de bom dinheiro, e que desdenhá-la é, historicamente, dar um tiro no pé. (*)
Mas optemos por falar de política. Tentar conotar os desacatos de Washington com a esquerda é uma escolha estúpida. Mas tem um propósito evidente: Portas insinua que da direita ou mesmo da extrema direita não pode vir mal ao mundo, a não ser quando elas se comportam como se fossem… a esquerda que Portas tem na cabeça.
PP evita assim tocar numa coisa óbvia: a ligação estreita entre a extrema direita de que o presidente norte-americano se fez paladino e protector, e a extrema direita em qualquer outra parte do mundo, como, por exemplo, a que entre nós levanta cabeça. Em vez de apontar o que seria lógico — vejam bem como se comportam e do que são capazes os apaniguados de Trump, tal como os de Bolsonaro, de Le Pen, de Abascal, ou de Ventura — Portas tenta uma manobra de diversão que disfarce a natureza brutal e radicalmente antidemocrática dos movimentos fascistas.
Com o truque dos “okupas” e da Revolução Francesa, Portas torneou uma outra questão. O ataque ao Capitólio — na medida em que mostra o à vontade com que se movimentam as hordas fascistas e a violência de que são capazes — serve para mostrar quão cúmplice é a tolerância com que a direita portuguesa e internacional tratou o mandato de Trump, e quão criminosa é a expectativa que nele depositou para “endireitar” o mundo. Portas tenta lavar a própria cara.
O mandato de Trump, com efeito, não se limitou ao exercício do poder presidencial a que todo o mundo assistiu como num circo. À sua sombra foi ensaiada a criação de uma internacional fascista, centrada nos EUA e estendendo ramos por todo o lado, como no Brasil e na Europa, sob a acção militante de agentes fascistas que Trump acolheu e tutelou. Apesar da derrota eleitoral, a força da extrema direita norte-americana ficou patente nos mais de 70 milhões de votos que Trump arrecadou e é portanto uma força com capacidade de acção que não vai desistir dos seus propósitos.
Ora, o número de Portas na TVI, ao iludir todas estas questões, diz muito sobre o próprio comentador e lança luz retroactiva sobre a sua carreira como jornalista, político, dirigente partidário e governante. E, como Portas não é caso único, a sua posição fala também sobre a deriva de toda a sua família política em direcção à extrema direita — como os casos de deserções do CDS e do PSD para as hostes de Ventura, e a mão estendida de ambos ao Chega, bem ilustram.
Paulo Portas — que nunca se livrará da suspeita que sobre ele recai de corrupção no negócio dos submarinos alemães, em 2004, quando foi ministro da Defesa de Durão Barroso — não tem qualificação política nem moral para lançar lama sobre a esquerda. Mas, em contrapartida, e por isso mesmo, é uma voz autorizada quando procura, com passes de mágica, absolver a extrema direita dos crimes que comete e absolver a direita da colaboração que lhe presta. Faz, com isso, um retrato fiel de si próprio e da direita portuguesa.
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(*) A burguesia, pelo menos na Europa, perdeu o fulgor revolucionário aí por volta de 1848, quando o proletariado emergiu como força política com vontade própria. E em 1871 mostrou que até o fervor nacionalista que antes a animara poderia ser posto em segundo plano, quando as burguesias francesa e prussiana se uniram para derrotar o proletariado insurrecto, como Marx sublinhou a propósito da Comuna de Paris. Esse mesmo instinto de que qualquer pequena brecha no poder do capital pode significar o desastre para os regimes burgueses é o que leva os Portas de qualquer latitude a renegar, como “mau exemplo”, mesmo as revoluções dos bisavós que levaram as burguesias ao poder.
Comentários dos leitores
•Chico da Emilinha 20/1/2021, 16:26
GRATO
Bem retratado o ilusionita
ABRAÇO
chico da EMLINHA
•M. Teresa Alves da Silva 20/1/2021, 19:48
O populismo que representou Trump, e representam outros,surge em sociedades descontentes e decadentes, onde as dificuldades sociais e económicas são muitas e as classes sociais trabalhadoras mais pobres, desempregados e marginalizados sentem "na pele" as injustiças diárias.
Os populistas não têm projecto social, não têm convicções, nem ideologia,encenam as suas intervenções e lideranças com frases soltas, sem conteúdo social, manipulando e gerindo o "envenenamento" das populações como em acções de "marketing".
É, pois, muito grave , até do ponto de vista histórico, confundir acções de massas populares, em contexto de revindicação ou luta,em tentativa de transformação ou alteração das sociedades em que se inserem e a violência de acções (avulso) manipuladas por populistas e demagogos, que agitam as "dores" da sociedade, em que pouco lhes importa as melhorias das condições de vida dos que pretendem mobilizar, mas sim os interesses/privilégios deles próprios, dos amigos e correlegionários , através do exercício do poder coercivo e discriminatório.