Elogio do cerco à Constituinte

António Louçã — 7 Janeiro 2021

12 Novembro 1975, cerco à Constituinte pelos operários da construção civil: a sede de justiça do proletariado

Quarenta e cinco anos depois daquele memorável 12 de novembro de 1975, já correram rios de tinta para vilipendiar os operários da construção civil que, fartos de serem despachados com promessas vãs, cercaram a Assembleia Constituinte reivindicando um aumento de salários razoável.

Hoje, graças à invasão do Capitólio, podemos apreciar o contraste entre um proletariado consciente e a populaça desembestada das milícias fascistas.

Recordemos brevemente, e de cor, o que nos ficou na memória dos tempos daquele cerco. A manifestação não foi convocada para S. Bento com algum plano golpista, para impor algum novo governo ou para conservar no poder algum presidente derrotado em eleições. Estava marcada para o Ministério do Trabalho mas o ministro partiu à socapa, recusando assim uma audiência aos representantes sindicais. Essa circunstância fez alterar os planos e levou os cerca de 100.000 operários a encaminharem-se para a Assembleia Constituinte, onde estavam certos de encontrar também o Governo.

Houve pressão, mas não houve violência. Os deputados queixaram-se depois do incómodo de passarem uma noite em S. Bento, mas nenhum deles sofreu qualquer agressão. No dia seguinte, saíram da Assembleia entre alas dos sitiantes, por vezes apupados, mas sem sofrerem qualquer beliscadura. Ao contrário do assalto ao Capitólio, com os seus quatro mortos de balanço, ninguém ficou ferido no cerco à Constituinte.

É certo que, de um ponto de vista político, faltava ali um enquadramento estratégico e o cerco não era mais do que uma expressão da fome e sede de justiça do proletariado, sem uma concepção da luta pelo poder e da forma de exercê-lo, e sem uma direcção que guiasse todos os seus passos pelo desígnio de substituir aquele “ninho de lacraus” por uma democracia directa.

E também é certo que, ao faltar-lhe esse enquadramento, era inevitável a expectativa ingénua de resolver um problema reivindicativo com um radical questionamento da legitimidade constituinte. Não surpreende portanto que o acordo assinado com o primeiro-ministro para que o contrato colectivo do sector entrasse em vigor a 27 de novembro tenha ficado no papel, como manobra ardilosa que era para desmobilizar os manifestantes. Ou seja: o défice dos manifestantes era o diametralmente oposto às maquinações golpistas que se lhes atribuiu.

À contenção dos manifestantes, contrapunha-se a raiva e a histeria da direita. Desde logo, chamaram a Polícia Militar, para reprimir e dispersar os manifestantes, mas esta não reprimiu nem dispersou. Chegada ao local, confraternizou com os manifestantes. As imagens de arquivo mostram os soldados da PM em alegres sardinhadas com os operários.

Depois houve ainda uma desastrada tentativa para evacuar o Governo com um helicóptero a aterrar nos jardins de S. Bento. E houve o discurso do primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, que começou por tentar a lisonja, para mandar os operários para casa — e eles não foram. Exasperado, Pinheiro de Azevedo, mudou de tom. O verniz da lisonja, que nele era muito fininho, deu lugar à grosseria e mandou os operários “bardamerda”. Mais uma vez, não foram.

Veio então o tal “acordo” que o Governo nunca teve intenção de cumprir, mas que os operários logo cumpriram na parte que lhes tocava, deixando sair os parlamentares sitiados. Mas ainda assim a direita da Constituinte tinha ficado ressentida e rancorosa. Deputados do PS, PPD e CDS partiram para o Porto, com a intenção de aí fazerem funcionar a Constituinte até que pudesse considerar-se domada a “Comuna de Lisboa”. Ou seja, até que triunfassem num golpe ou numa guerra civil.

Os ecos da histeria e do rancor da direita ainda hoje nos chegam na forma de uma sistemática difamação desse proletariado que soube forçar o diálogo sem derramar uma gota de sangue e que intuitivamente lutava por uma democracia superior a esta que vem amamentando em todo o mundo os Trumps e os Venturas. Possa o exemplo do cerco à Constituinte ilustrar o contraste entre um proletariado consciente e as hordas racistas que voltam a emergir nos dias de hoje.


Comentários dos leitores

John Catalinotto 12/1/2021, 22:53

Obrigado para o artigo. Mesmo após 45 anos tem lições importantes para a luta da classe operária.

Chico da Emilinha 20/1/2021, 16:21

GRATO pelo lembrança, muito importante acertiva a abordagem.

ABRAÇO

chico da EMILINHA

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 24/2/2021, 5:40

Obrigada por ter escrito com clareza , sobre um acontecimento tão controverso do pós 25 de Abril.

Francisco d'Oliveira Raposo 31/3/2021, 19:35

Inevitavelmente, novos cercos a São Bento ocorrerão, mesmo contra os reformistas que têm travado a fundo as lutas quando se sente, cada vez mais a necessidade de ir mais além.
O cretinismo parlamentar tem limites... bem como a paciência do proletariado.


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