Os crimes do SEF. A excepção e a regra

Urbano de Campos — 21 Dezembro 2020

O assassinato de Igor Homeniuk foi um episódio isolado?

Todo o arco do poder e adjacências, do Chega ao PCP, adoptou o mesmo critério de julgamento a respeito do assassinato cometido no aeroporto de Lisboa por agentes do SEF: há que salvar a honra das instituições. O SEF é, assim, apresentado como um cabaz de excelente fruta, apenas manchado por umas quantas maçãs podres, de acordo com a imagem consagrada para estas ocasiões.

O argumento de que nem todos os agentes cometem crimes ou violam as leis é um alibi para esconder uma realidade dura de reconhecer pelo poder: as chamadas forças de segurança são um foco permanente de violência pela sua própria natureza de braços armados do Estado e para isso não é preciso que cada um dos seus membros cometa violências ou infrinja a lei.

Mas é para infringir o formalismo da lei “quando tal se justificar” que elas têm o mandato que têm. O monopólio da violência conferido ao Estado significa isso mesmo. E tal violência pode sempre ocorrer — basta que os agentes, numa situações concreta, assim o entendam. Julgá-los e castigá-los (obviamente a posteriori) não resolve o problema, nem altera o comportamento geral que lhes é exigido de, “se for preciso”, irem além dos limites.

O assassinato de Igor Homeniuk foi um episódio isolado? Alinhemos alguns factos.

O Comité para a Prevenção da Tortura (CPT) do Conselho da Europa voltou a denunciar, em Novembro deste ano, a violência policial em Portugal, dizendo que ela é frequente, sobretudo contra afro-descendentes e imigrantes, e pedindo uma acção urgente do Governo português. Já em 2018, o mesmo Comité tinha apontado Portugal, pelos vistos sem resultados, como um dos países europeus com mais violência policial.

Sublinhem-se algumas das afirmações feitas pelo Comité no relatório deste ano. As violências policiais “são um facto, e não o resultado de haver alguns polícias desonestos”; “todos os anos há alegações de mais casos, e provas”; “não há suficiente consciência de que isto está no sistema”; “há relutância em levar alguém a ser punido”.

Recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação de oito polícias da esquadra de Alfragide que tinham sido sentenciados, em Maio de 2019, por violência contra afro-descendentes da Cova da Moura, e por falsearem testemunhos e relatórios para encobrirem o crime. Muitas outras agressões têm sido documentadas em vídeos e fotos: no Bairro Jamaica (Janeiro 2018), na estação de comboios da Amadora (Janeiro 2020), por exemplo.

Em Guimarães, em Outubro de 2014, um adepto de futebol foi agredido por polícias do Corpo de Intervenção e ficou cego de um olho. Cinco anos depois, todos os onze agressores, incluindo um dirigente sindical da PSP, foram ilibados por se terem protegido mutuamente através de silêncio cúmplice.

À violência física há que juntar um assinalável cadastro de corrupção que retrata a moral que impregna as forças ditas de segurança e de defesa: o roubo de Tancos, com todas as conivências da hierarquia do Exército que ficaram a nu; a rede de facturação falsa nas messes da Força Aérea, igualmente com altas patentes envolvidas (68 arguidos, militares e civis); o roubo e tráfico de 55 pistolas Glock do armeiro nacional da PSP; a recorrente condenação de polícias por ligações ao tráfico de droga. Etc. etc.

Voltando ao SEF, o próprio quadro legal é fonte de arbitrariedades ao permitir a detenção de pessoas por 60 dias; os detidos ficam isolados e em condições degradantes; e o acesso de advogados para acompanhamento jurídico dos detidos foi sistematicamente negado, como denunciou (só há dias) a Ordem dos Advogados.

Aos três apontados assassinos junta-se mais uma dúzia de cúmplices e encobridores. A morte de Igor Homeniuk foi comunicada à família como sendo natural. Uma certidão de óbito por causas naturais foi forjada por médico “colaborante”.

E o círculo de cumplicidade alarga-se: uma rede de troca de mensagens entre funcionários do SEF comentava em tom de gozo, em linguagem revoltante, a morte de Igor, sem que nenhum dos membros da rede mostrasse intenções de denunciar o crime.

Entretanto, novas denúncias de violências várias, que estavam caladas, vieram a público, obrigando o ministro da Administração Interna a alargar o âmbito do inquérito que tinha determinado a propósito de Igor Homeniuk.

Há dias, o director nacional da PSP Magina da Silva, à saída de uma conversa com o presidente da República, tentou contrariar a onda de condenação do crime. Dizia ele que o SEF estava a ser “vilipendiado” e que importava apurar todas as circunstâncias em que o assassinato tinha ocorrido — traduzindo, em linguagem de conveniência, o que outros expressaram de modo mais cru: “O que terá o ucraniano feito para provocar a reacção dos agentes do SEF?” Ou seja, uma tentativa de reversão de culpas.

Diante de tamanho rol, põe-se a questão de saber quantas são afinal as “maçãs podres”, que modalidade de podridão assumem e por onde se distribuem. É este conjunto de problemas — e não cada episódio tratado caso a caso — que permite fazer um retrato de corpo inteiro das ditas forças de defesa e segurança, da sua função e da sua idoneidade.

Que a direita, toda ela, se mostre defensora, a todo o transe, “das instituições” — e sobretudo das polícias, e mais ainda quando elas cometem crimes visíveis e ficam expostas — é da própria missão do poder. Que a esquerda contribua para o mesmo coro, ainda que tente utilizar outro discurso, já é questão doutra espécie e mais grave.

A reacção da esquerda parlamentar ficou muito aquém do que a situação global requer. O BE, quando se espantou por “o Estado de direito” ter permitido tal crime e quando assentou a sua resposta política ao caso na demissão do ministro; e o PCP, quando recomendou que a reforma do SEF não fosse feita “de cabeça quente” — adoptaram a postura de quem quer contribuir apenas para o remedeio do mal. A preocupação em proteger o “bom nome” do Estado e dos seus órgãos contou mais do que a denúncia da sua natureza opressiva e dos crimes que à sombra da lei são cometidos. A fonte dos problemas foi deixada de lado.

Ambos perderam, mais uma vez, ocasião para denunciar o que a esquerda deve denunciar: os abusos e a violência sobre os cidadãos como reserva sempre presente do poder; o recrutamento dos agentes operacionais e o seu treino para o exercício da brutalidade; a função repressiva das chamadas forças de segurança, decorrente da sua própria natureza de classe; a diferença crucial entre a segurança das populações (que deveria estar nas próprias mãos das populações, em órgãos por si escolhidos e controlados) e a repressão exercida pelo poder sob a capa da “ordem pública”.

Entendemos que é tarefa da esquerda incentivar a saudável aversão da massa popular às forças repressivas, na medida em que são o braço armado do poder, instrumentos da violência de Estado, mandatárias das classes dominantes. Não o fazer, especialmente nas ocasiões em que esse papel fica à vista de todos, é contribuir para meter na cabeça do cidadão comum que as chamadas forças de segurança terão de ser aceites e respeitadas em quaisquer circunstâncias.

Meses atrás, nos EUA, nos movimentos de protesto desencadeados pelo assassinato de George Floyd, e tantos outros, às mãos da polícia, surgiu e teve assinalável eco a exigência de extinção das polícias. Esta ideia espontânea nasceu das circunstâncias, da evidência de que as polícias, pela sua própria função na orgânica do Estado, não podem ser reconvertidas em corpos de defesa das populações. “Ideia perigosa!” — comentaram por cá, mesmo à distância, os paladinos da “ordem”. Mas não há alternativa, como os factos de cada dia vão evidenciando.


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