PSD: quando a ideologia não pesa muito

Manuel Raposo — 8 Dezembro 2020

Restos do Cessna caído em Camarate. Início do sebastianismo sá-carneirista

A evocação de Sá Carneiro, 40 anos após a sua morte em Camarate, é muito mais do que uma homenagem de calendário, ou do que uma tentativa de reanimar o PSD de hoje com o sopro do PPD de ontem. Também não se trata apenas de procurar efeitos imediatos, rebaixando Rui Rio diante do padroeiro. Será tudo isso, mas ainda mais: um esforço para congregar toda a direita, reabilitando, sob vestes democráticas, o que há de mais reaccionário tanto na génese do PPD como nos planos políticos alimentados por Sá Carneiro desde sempre.

A morte prematura de Sá Carneiro e o arrastado mistério criado à volta do acidente de Camarate forneceram à direita a possibilidade de forjar um líder-mártir e de o pintar com as cores que mais jeito lhe vão dando em cada momento político.

Ao contrário da imagem do “visionário”, do homem “providencial”, do estadista que “faz falta” ao país, do político “de princípios” que contrastaria com os carreiristas de hoje, o percurso prático de Sá Carneiro retrata alguém que joga consoante as circunstâncias do momento, com uma visão oportunista da política, e que, feitas as contas, colecciona uma sucessão de fracassos.

Desconhecido durante todo o consulado de Salazar, apareceu, aos 35 anos, como deputado à Assembleia Nacional fascista, nas listas do partido único, quando a ilusória “primavera marcelista” deu os seus débeis pios. De 1969 a 1973 fez parte da chamada “ala liberal” do regime, na verdade um pequeno grupo de proclamados “reformadores”, tanto mais tolerado quanto inócuo, com que o marcelismo queria lavar a cara.

Em vez da (agora propalada) intenção de democratizar o país, o que melhor define os propósitos do grupo era impedir que o regime — apodrecido, isolado e em riscos de desagregação — desse lugar ao que iria acontecer a partir de 25 de Abril de 74: uma onda de revolta popular. Jogar por antecipação era a ideia. Como o plano de remendar o regime por dentro fracassou, diante da resistência da velha guarda, Sá Carneiro renunciou ao cargo, como os demais “reformadores”.

Reapareceria em Maio de 74 como co-fundador do PPD. Ao mesmo tempo que inscrevia no programa do partido o “socialismo” (!) e a “sociedade sem classes” (!), apostava todas as fichas no general Spínola — na sua tentativa de travar a independência das colónias, de impor um regime de semi-democracia tutelado por velhos chefes militares do fascismo recauchutados como “democratas”, de manter viva e activa a polícia política, de travar a todo o custo o movimento popular nascente.

Perdida a aposta spinolista em dois momentos decisivos — 28 de Setembro de 74 e 11 de Março de 75 —, o recurso de Sá Carneiro (como do PS soarista e de toda a direita) foi a ala direitista do MFA e a montagem do golpe novembrista de 1975 capitaneado pelo então tenente-coronel Eanes.

As vitórias eleitorais do PS que se seguiram, porém, mantiveram o PPD afastado do Governo. E a capacidade de resistência que o movimento popular, ainda assim, manifestava frustrou uma vez mais a ambição política de Sá Carneiro. Sem lugares para distribuir pela sua clientela, o PPD debateu-se em divisões internas. Sá Carneiro chega a demitir-se em 1977, e é pela chantagem que impõe, como um monarca, a sua vontade pessoal ao partido.

Em 1979, forma a Aliança Democrática, com o CDS e o PPM, único caminho que vê de bater o PS. A aliança congrega, para além dos formais signatários, toda a direita fascista sedenta de desforra. A AD ganha as eleições intercalares desse ano e forma governo, com Sá Carneiro à cabeça, em Janeiro de 1980. O executivo duraria menos de onze meses.

Nas presidenciais de Dezembro de1980, nem sequer o general Eanes se enquadrava nos seus planos. A aposta foi ainda mais à direita. Escolheu um general ultra-direitista, Soares Carneiro — colonialista, cinzento, sem ideias políticas próprias — que contava controlar como um mandarete. Até nisto a matriz é salazarista: um chefe do poder executivo que manipula um chefe de Estado de fachada, apoiado numa maioria parlamentar fiel. O lema do pequeno Napoleão era na altura: uma maioria, um governo, um presidente.

Novo fracasso desenhava-se, no entanto: a derrota de Soares Carneiro face a Eanes era mais que certa. O acidente de Camarate, três dias antes das eleições, apenas veio envolver em nevoeiro o que seria um novo percalço de um político sem rumo certo, fadado para perder como um jogador que não sabe contar as cartas.

A mitificação de Sá Carneiro, negando os constantes desaires e zigue-zagues do homem e do partido, serve hoje para promover uma espécie de segunda versão da velha AD. Não por acaso, foi esse o nome dado à coligação feita nos Açores pelo PSD , desta vez incluindo toda a direita e extrema-direita, sem qualquer rebuço — e ficando o PSD no lugar de refém.

O acordo com o Chega, 40 anos depois, é um duplo revelador: daquilo que realmente pretendia a AD de Sá Carneiro; e do que pretendem hoje todos os que se abrigam atrás do saudoso líder e da sua AD.

A jornalista Maria João Avillez, biógrafa e indefectível apoiante de Sá Carneiro — e de tudo o que puxe o país para a direita — disse-o com autoridade (Público, 4 Dezembro): na aliança que fez com a extrema-direita, “o PSD dos Açores não teve de se trair”, nem o seu líder “teve de transigir em nada de essencial do seu programa e, provavelmente, da sua alma e do seu carácter”.

Programa, alma e carácter! — é obra. Nada de admirar, num partido em que, diz a mesma MJA, “a ideologia nunca pesou muito”.


Comentários dos leitores

Leonel Lopes Clérigo 13/12/2020, 11:58

EM BUSCA do IMPÉRIO PERDIDO

Este texto acima de MR, ao focar-se na "personagem" Sá Carneiro talvez possa, em minha simples opinião, contribuir para um melhor esclarecimento futuro sobre o fim da longa "condição" dos portugueses como IMPERIALISTAS e a quem já alguém chamou de "ULTRA-IMPERIALISTAS" ( Traduzindo: Imperialistas de "baixa categoria").
O facto de - tal como os nossos "Hermanos" aqui do lado - nos termos lançado em "primeira mão" na "aventura" das DESCOBERTAS, deu-nos um estatuto de "antiguidade patrimonial" para podermos dos "últimos" a sermos "corridos" dos DOMÍNIOS coloniais.
Toda a nossa HISTÓRIA "moderna" girou à volta desta situação coisa que a IDEOLOGIA DOMINANTE - melhor seria dizer "as nossas classes dominantes" rentistas - sempre se esforçou em ocultar. Sempre se viveu tendo por "base" as "Colónias" e o 25 de Abril foi o episódio que fechou - melhor dizer "fizeram-nos fechar" - esse longo CICLO.
Por isso a "queda da cadeira" do velho SALAZAR é "símbolo" curioso do "fecho" desse CICLO HISTÓRICO": o Império caiu de podre .
Spínola - um neo-colonialista "feito à pressa" - foi claro quando deu a entender que a "guerra colonial" estava perdida. O Burguês - sobretudo quando se faz "político" - é sempre um "filósofo" pragmático: adapta-se bem à mudança e seus "ventos" pois entende ser a "Política" a arte da "maleabilidade". Os "Princípios", que se lixem.
Onde entra então em tudo isto Sá Carneiro e os célebres "entristas liberais" do Regime fascista de SALAZAR que levou uma vida de "missão" a defender, até à última pinga de sangue, as COLÓNIAS?
MR dá-nos acima uma pista quando refere a "...a ilusória “primavera marcelista”, que mais não era que um "passo" no "assumir da derrota do colonialismo puro e duro", tentando agora a "cartada" do NEOCOLONIALISMO.
Há quem, na altura, visse nesta "jogada de bimbos" coisa de enorme "inteligência" e "ratice": puro engano. A "questão central" era só uma: um País SUBDESENVOLVIDO já não tinha, nos "ventos" que sopravam, direito a IMPÉRIO. E ele lá se foi com grande desgosto dos RENTISTAS - só?... - que sempre obtiveram no RENTISMO COLONIAL uma sua importante e decisiva base de sustentação económica.


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