Terror de Estado: uma ferramenta ‘normal’

Manuel Raposo — 28 Novembro 2020

Mandantes e beneficiários de mais um crime.

Em Janeiro passado, o general iraniano Qassim Suleimani foi assassinado às ordens de Trump, com o aplauso e a cooperação de Israel. Ontem, um cientista iraniano, Mohsen Fakhrizadeh, especialista em energia nuclear, foi morto numa emboscada na região de Teerão. A longa experiência da CIA e da secreta israelita em assassinatos selectivos, a estreita cooperação entre Trump e Netanyahu, a cumplicidade entre os EUA, Israel e a Arábia Saudita, as ameaças e provocações constantes de todos eles ao Irão, a natureza da actividade de Fakhrizadeh — não deixam dúvidas sobre quem são os mandantes e os beneficiários do crime.

Alguns factos podem ajudar a perceber o filme.

Em 2018, numa intervenção televisiva, Netanyahu apontou a dedo Mohsen Fakhrizadeh como um dos alvos a abater por Israel (“Fixem o nome dele”, disse), acusando-o, gratuitamente, de estar à cabeça de um projecto iraniano para produzir armas nucleares.

Esta acusação, recorrente por parte de Israel, tem sido repetidamente desmentida pela Agência Internacional da Energia Atómica, encarregada de inspeccionar a produção de urânio e as centrais nucleares iranianas. Nunca a AIEA encontrou indícios de tal prática por parte do Irão nem de violação do tratado assinado em 2015 com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, França, Reino Unido, China  Rússia) mais a Alemanha.

Como se sabe, o governo de Trump rompeu este acordo em 2018, voltando a impor sanções ao Irão numa acção convergente com os propósitos de Israel e da Arábia Saudita. Objectivo: abater a economia iraniana, levar a população à miséria e à revolta, criar base para um golpe de Estado, acabar com a independência do Irão, deixar campo livre a sauditas e israelitas como gendarmes dos EUA no Médio Oriente.

No fim de semana anterior ao assassinato de Fakhrizadeh, Mike Pompeo (o ainda secretário de Estado de Trump) teve um encontro na Arábia Saudita, na cidade de Neom, com o príncipe Mohamed Bin Salman — ele próprio especialista em assassinatos, como o do jornalista saudita Kashoggi, morto e esquartejado em Istambul. Juntou-se-lhes, em Neom, numa deslocação inicialmente mantida secreta, Benjamin Netanyahu, acompanhado do chefe da Mossad, a agência de espionagem israelita.

Só por ingenuidade se poderia pensar que o encontro não se destinou a acertar agulhas sobre a operação que matou Mohsen Fakhrizadeh.

Este crime segue-se a uma série de outros assassinatos de cientistas iranianos pelos serviços secretos de Israel. Segue-se também a actos de sabotagem contra instalações nucleares iranianas — como o que foi praticado em 2010 através do vírus informático Stuxnet, produzido em conjunto pelos serviços secretos norte-americanos e israelitas.

O objectivo deste último assassinato, tal como o de Suleimani, parece óbvio. Por um lado, assestar golpes no Irão que o debilitem política e materialmente; por outro, provocá-lo a ponto de gerar uma reacção da sua parte que dê pretexto a uma acção militar de envergadura dos EUA ou mesmo de Israel.

O assassinato de Mohsen Fakhrizadeh ocorreu dois dias depois de o presidente iraniano Hassan Rouhani ter declarado que o Irão e os EUA poderiam voltar atrás, ao tempo anterior a Trump, numa clara mensagem dirigida à próxima administração de Joe Biden.

Apesar disso, até à data, Biden não fez nenhum comentário sobre o assassinato. Mas um senador democrata (Chris Murphy / twitter) comentou o caso e, com isso, definiu como o poder norte-americano encara tais actos. Disse ele: “Sempre que os Estados Unidos ou um aliado seu assassina um líder estrangeiro, sem declaração de guerra, nós normalizamos o procedimento como uma ferramenta de política estatal”. Dito de outro modo, o terrorismo de Estado é uma ferramenta normal da política norte-americana.

Declarações recentes de Biden acerca do Irão não podem ser desligadas destes acontecimentos. Embora muito vagamente e de modo ambíguo, disse ele que pretendia retomar as negociações com o Irão acerca do acordo que Trump rompeu. Mas o propósito de renegociar os termos desse acordo e de alargar o seu âmbito (nomeadamente no respeitante a mísseis balísticos e à influência do Irão no Médio Oriente) indicam que não se tratará de um simples regresso ao acordo de 2015. Ora, em parte, estes foram os argumentos de Trump — uma suposta “estreiteza” do acordo —, ainda que usados como pretexto para impor de novo as sanções ao Irão.

Apesar disto, Trump, Netanyahu e Salman acham que mais vale prevenir que remediar. Quantos mais escolhos forem colocados no caminho da nova administração, mais certezas podem ter de que a política de apoio sem restrições a Israel e à Arábia Saudita — contra os palestinos, contra a Síria, contra o Hezbolá libanês — não voltará ou terá muitas dificuldades em voltar atrás.


Comentários dos leitores

Leonel Lopes Clérigo 29/11/2020, 11:52

A "GRANDE ECONOMIA" dos USA

1 - Ninguém de bom senso pode negar que a Economia dos USA é das "maiores" do Mundo ou, como até muitos afirmam, "...é a maior do mundo". Mas em contrapartida raros são aqueles que procuram mostrar como HOJE conseguem os USA obter essa "grande riqueza": a sua potente MÁQUINA PRODUTIVA parece "enevoar" a questão.

2 - Nós, Portugueses - apesar da "ignorância" acerca da nossa História ainda seriamente por fazer - conseguimos já vislumbrar que o "Grande Império" que detivemos nas "sete partidas" do Mundo, trouxe-nos "vantagens" inestimáveis e riquezas que ainda podemos - nos "museus"... - ver numa pálida amostra. Este Pequeno PAÍS até elefantes levou, como oferta, ao Papa e "Igrejas" foi uma em cada "esquina produtiva" do País. Contudo e como é "tradição" dizer-se "...o que era doce, acabou-se". Resta-nos o "vazio" nas algibeiras.
Todas as "coisas" parecem assim ter o seu "reverso da medalha" e as "riquezas fáceis" - sem origem no TRABALHO DURO - também: o "outro", não gosta de ser explorado.
Essas riquezas "exploradas" ao Mundo acabaram por estagnar - em toda a Ibéria - a nossa economia, tal como hoje acontece com a "mama" dos "subsídios da UE" que logo faz "luzir o olho" a qualquer burguês.
O resultado só os cegos não querem ver: implantou-se uma "tradição" RENTISTA de séculos nas nossas classes dominantes e que parece manter-se intacta e bem visivel até hoje. E aqui, temos que "agradecer" ao COVID o ter mostrado a enorme "bolha" de uma ECONOMIA de SERVIÇOS que invade e bloqueia o "progresso" do PAÍS apesar dos benefícios de "guarda-chuva" que oferece à nossa decrépita BURGUESIA RENTISTA .

3 - Regressando: de certa forma, pode fazer tudo isto alguma luz sobre a "Grande Economia USA" dos nossos dias. Os seu "Biliões" não são todos "criados" no seu território: grande parte vem de fora, da "Exploração do resto do Mundo" dito "Ocidental" que, "à borla", para ele "TRABALHA". Ou seja: os "explorados" sustentam e reproduzem a sua própria "exploração"...e o seu próprio SUBDESENVOLVIMENTO. Por isso julgo certo o que MR diz no seu texto acima: "...o terrorismo de Estado (do "Golpe de Estado" ao "assassinato") é uma ferramenta normal da política norte-americana". Nada mais certo. E fazê-la perder isso, vai ser o diabo...

4 - Conheço gente "desiludida" que "não leva a sério" os perigos do IMPERIALISMO ou seja, do pequeno grupo de PAISES que, nas várias formas de "ferro e fogo", "compõem" sua RIQUEZA através do "resto do Mundo". A esses, recordo invariavelmente - directa ou indirectamente - o velho ditado Popular: "Fiem-se na Virgem e não corram e logo vêm o trambolhão que levam..."

afonsomanuelgoncalves 29/11/2020, 14:01

Da peste fascizante que reinou no período do Partido Conservador cujo chefe é o paranóico Tramp, segue-se o democrático aterrador cujas ameaças já ecoaram através da nova Vice-Presidente que nem o massacrado Hamas poupou. Por isso qualquer esperança sobre a evolução da política americana no Médio Oriente corresponde ao apaziguamento da política de conciliação que desde há décadas se vem desenvolvendo e já se enraízou no espírito colectivo que une socialistas e sociais democratas contra a caricata extrema-direita.


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