O teletrabalho como panaceia

Editor — 25 Novembro 2020

O teletrabalho parece ter-se tornado uma panaceia. Patrões, Governo e meios de comunicação, não só o promovem invocando razões sanitárias, como se empenham em exaltar-lhe supostas virtudes inovadoras — como se estivéssemos diante de uma revolução no mundo do trabalho. Quase se agradece à pandemia por vir obrigar a tamanho “progresso”.

Como é bom de ver — mas não posto em destaque pelos adeptos desta onda “modernizadora” — os trabalhadores que podem trabalhar a partir de casa são uma reduzida minoria no conjunto dos trabalhadores empregados. São ainda, em grande parte, trabalhadores improdutivos e muitos deles desempenham mesmo funções socialmente supérfluas.

Dos perto de cinco milhões de trabalhadores empregados, poucas centenas de milhares estariam, teoricamente, em condições de exercer trabalho a partir de casa (pelo tipo de actividade, pelo grau de instrução, etc.). E destes, apenas uma escassa parcela irá fazê-lo de facto.

A maioria dos trabalhadores, nomeadamente os produtivos, tem de estar mesmo, todos os dias, no local de trabalho e deslocar-se, como dantes, de casa para lá e de lá para casa. Trabalhadores agrícolas e pescadores, mineiros, operários fabris, da construção, dos transportes ou da logística, empregados do comércio de bens, empregados de limpeza e de serviços de manutenção, etc. não podem, como é evidente, beneficiar de teletrabalho.

Esta distinção óbvia vem ao caso, porque, na onda de comentários e exaltações à volta do tema, há mesmo quem ouse falar — em jornais, rádios, televisões — de “novo paradigma” de trabalho. A realidade é outra, em múltiplo sentido.

A selecção em função do teletrabalho implicará uma ainda maior desigualdade social entre trabalhadores, com evidente prejuízo para os que têm de continuar nos locais de trabalho —isto é, a maioria da massa operária, os de menor instrução e os de menor qualificação, que correspondem por regra aos de salários mais baixos. Impossibilitados, pela natureza das funções que exercem, de ficarem em casa e de gerirem o seu tempo de trabalho, correm, ainda por cima, mais riscos de contaminação.

As reclamações, perfeitamente justas, que se levantam exigindo a criação de legislação que proteja o teletrabalho, e maior intervenção da Autoridade para as Condições de Trabalho, contrastam, no entanto, com a recusa terminante do patronato e do Governo em alterar o Código do Trabalho, de aplicação geral — o que significa que, por vontade do poder, os trabalhadores presenciais em nada beneficiarão de um eventual efeito da pandemia na legislação laboral.

Mesmo entre os teletrabalhadores, as coisas não serão certamente iguais. Muitos deles arriscam (não falando já de despedimento) quebras salariais a prazo, correspondentes, por exemplo, ao subsídio de refeição ou à parte do salário que agora vai para transportes. A pressão do patronato não vai deixar de apontar nesse sentido, na lógica de pautar os custos do trabalho pelo nível de sobrevivência — como já se manifesta nas investidas para reduzir a Taxa Social Única, no propósito, de longa data, de rebaixar o salário indirecto.

Numa altura em que o capitalismo mostra, mundialmente, toda a sua fragilidade — ao ponto de ser incapaz de defender a vida das populações — assiste-se, com a conversa do “novo paradigma”, a uma tentativa rasca de glorificação de capacidades “renovadoras” do capitalismo que não mais existem. Tenta-se assim inverter o significado da marcha dos acontecimentos. Onde se vêem sinais de caos sanitário e económico, sinais de colapso de uma inteira organização social, querem os apóstolos do capitalismo, com um truque de ilusionismo, que todos nós vejamos um sistema com futuro radioso.


Comentários dos leitores

Altamiro Dias 30/11/2020, 14:10

Parabéns camarada Manuel Raposo


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