Varrer o lixo da História

MV / MAR (Movimento Anti-Racista) — 28 Setembro 2020

Sociedades capitalistas precisam da desigualdade para sobreviverem

O eco que o assassinato do norte-americano George Floyd, às mãos da polícia, teve em praticamente todo o mundo, revela que as discriminações raciais são assunto que toca a todas as sociedades. Tal como a imolação de um vendedor ambulante tunisino em 2011 — também maltratado pela polícia — foi rastilho para as Primaveras Árabes, apesar das diferenças de país para país, o assassinato de Floyd veio pegar fogo ao material explosivo que as sociedades capitalistas, todas elas, acumulam. Sintoma claro da universalidade de muitos dos problemas que elas defrontam.

O racismo é uma manifestação, particularmente aguda, das discriminações sociais em que assentam e prosperam os regimes capitalistas. Negar o racismo, nomeadamente na sociedade portuguesa, ou é cegueira ou é mistificação. Mas apontar o racismo como uma simples reminiscência do passado, como mera nódoa “cultural”, como problema que a “educação cívica” há-de resolver é também esconder o facto de as sociedades capitalistas (incluindo as de hoje) necessitarem da desigualdade para sobreviverem. Por isso a reproduzem todos os dias.

E quando as promessas de promoção social se esgotam, por força de um capitalismo caduco, sem margem de progresso, quando a miragem de um futuro melhor já não pode ser vendida — nessa altura, as discriminações têm não apenas de ser mantidas, como têm de ser “justificadas”. É o papel que desempenham as seitas fascistas ou os paladinos da supremacia branca, mas também todos os ideólogos da superioridade masculina, os cavaleiros das virtudes nacionais, os teorizadores da diferença social como estímulo ao progresso.

Precisamente porque a desigualdade, a discriminação, o racismo fazem parte integrante do mundo em que vivemos e o alimentam, fazer-lhes frente não é questão de mera indignação cívica — é questão de combate social. O manifesto que publicamos, por um Movimento Anti-Racista, aponta nesse sentido.

 

PORQUÊ O MAR?

O MANIFESTO que publicamos resume as preocupações que levaram algumas pessoas a reactivar o Movimento Anti-Racista, Anti-Colonialista e Anti-Nacionalista, criado em 1991 e activo até 1994, numa altura em que Portugal e Espanha se preparavam para celebrar os 500 anos da chegada de Colombo à América, data que marca o início daquele que foi o maior genocídio da história da humanidade, e sobre o qual se ergueu a prosperidade dos países europeus e em que, como agora, cresciam a violência e os preconceitos racistas e xenófobos no nosso país contra os imigrantes do Leste da Europa, África, Ásia e América Latina.

MANIFESTO POR UM MOVIMENTO ANTI-RACISTA

Racismo, nacionalismo, xenofobia, populismo. É como se todo o lixo da história desabasse sobre as nossas cabeças pela mão da extrema-direita em ascenso no nosso país, um fenómeno também verificável em muitos outros países, como os EUA, Brasil, Filipinas, Alemanha, França, Itália, norte e leste da Europa.

45 anos passados sobre o fim das guerras coloniais e a queda do império, continuam enraizados na sociedade portuguesa os mitos lusotropicalistas, segundo os quais Portugal não promoveu o colonialismo mas o “encontro de culturas”, não praticou o racismo mas a miscigenação, não teve colónias mas “províncias ultramarinas”, não se tendo nestas praticados os horrores das colonizações britânica, holandesa, francesa ou espanhola.

A verdade é que Portugal tem um passado negro e pioneiro de 500 anos de expansionismo imperial e colonização marcado pelo tráfico negreiro, a pilhagem dos recursos e riquezas dos povos de África, Ásia e Brasil, o trabalho forçado (mais tarde designado por “contrato”, eufemismo criado para sacudir a condenação internacional), as conversões forçadas ao catolicismo, as torturas e fogueiras da inquisição. As guerras de “pacificação” das colónias no final do século XIX e início do XX e as guerras coloniais dos anos 60 e 70 continuam a ser encaradas como feitos nobres e ao “serviço à Pátria”, escondendo que foram actos de submissão de povos pela força, marcados por massacres, torturas, escravatura, violações e roubo.

Hoje, como no tempo da ditadura, continua a negar-se tal passado e a mitifica-lo como a grande aventura portuguesa que “deu novos mundos ao mundo” e arrancou ao obscurantismo “indígenas e selvagens”, civilizando-os, e não como aquilo que foi: uma empresa multissecular de saque, escravização, pilhagem e ocupação forçada de territórios alheios.

O racismo português foi moldado por estes 5 séculos de exploração e opressão colonial, antecedidos pela perseguição e expulsão de judeus e muçulmanos.

Inevitavelmente, o peso histórico de um tal passado gerou preconceitos relativamente às culturas e aos povos perseguidos, subjugados e escravizados e está a determinar a forma como nos relacionamos com os não europeus. Há uma relação directa, mesmo que subtil, entre esse passado opressor e as dificuldades que hoje um negro, asiático ou brasileiro encontra para alugar casa; o ser olhado como provável criminoso tanto pela polícia como pelo cidadão comum; na associação que muitos portugueses fazem entre brasileira e prostituta; no caber aos imigrantes, e em particular aos não brancos, os trabalhos mais mal pagos e desqualificados; a taxa de desemprego dos oriundos das ex-colónias ser o dobro da dos portugueses e a de encarceramento mais de 10 vezes superior.

Há em largos sectores do povo português – dado o lastro de um passado colonial com que ainda não ajustou contas, somado a uma profunda e persistente crise económica, política e social que os empurra para a pobreza continuada – uma crescente adesão à retórica nacional-fascista, racista, que tem nos negros, imigrantes e ciganos os bodes expiatórios, e também à demagogia fascizante favorável a soluções autoritárias que ponham o país e os políticos na ordem, os corruptos na prisão, mande pretos e imigrantes “para a terra deles” e criminalize os ciganos.

É neste clima de crise social e de valores solidários que certas camadas médias se descobrem, face aos trabalhadores imigrantes, numa relação de superior para inferiores. Os cidadãos são os brancos; quem trabalha nas obras, faz limpezas, recolhe o lixo, moureja nos campos e estufas agrícolas, mora em guetos e barracas são os imigrantes e seus descendentes. Daí o medo e o desprezo, típicos de sociedades que submetem e rebaixam outras.

Durante décadas a fio salazaristas e democratas encartados andaram a jurar que em Portugal não havia racismo. Agora, depois de um branco ter assassinado um negro por causa de um cão, e de um bando nazi ter dado 48 horas a uma dezena de deputados e activistas anti-racistas para abandonar o país e cessarem as suas actividades políticas, ameaçando-os e às suas famílias se o não fizessem, descobriram que afinal temos um problemazito de racismo, mas nada de grave. E daí a culparem os anti-racistas de alimentarem os extremismos de direita foi um passo.

O facto é que os neo-nazis portugueses não mostravam tal agressividade desde há 30 anos, quando os skins matavam e espancavam. Nos últimos meses espancaram homossexuais, activistas de esquerda, atacaram um centro libertário, convocaram manifestações contra o anti-racismo, realizaram uma concentração ao estilo KKK frente a uma associação anti-racista, espalharam pelas paredes de Lisboa frases de ódio racial e nacionalista, enquanto nas redes sociais a verborreia racista e xenófoba corre como um esgoto a céu aberto.

Sinal dos tempos, o presidente Medina (CMLisboa) manifesta o seu empenho em criar um museu de enaltecimento dos “descobrimentos”.

Sabemos que a discriminação auxilia a exploração, os baixos salários, a divisão entre trabalhadores e os conflitos no seu seio, dificulta a união e a solidariedade entre os explorados e fortalece as tendências racistas e xenófobas. E que a negação e a desvalorização destes preconceitos e a integração progressiva das propostas da extrema-direita pelos partidos democráticos nos seus programas de governo, em vez de travar a sua influência e crescimento, está a abrir as portas ao fascismo tornando-o uma ameaça cada vez mais presente no nosso país.

Pelo que é necessária a actuação unitária e quotidiana junto dos discriminados, estimulando a sua auto-organização nas diversas frentes possíveis (sindicatos, associações culturais e desportivas, de ajuda mútua, etc.), numa atitude decisiva contra todas as manifestações do “chauvinismo branco”. É possível travar a extrema-direita conquistando a confiança das massas, demonstrando, nos actos, que somos capazes de organizar eficazmente as lutas contra a discriminação racial e o fascismo em todas as suas manifestações.
A isso nos propomos, com quem estiver connosco.

Setembro 2020


Comentários dos leitores

Manuel Zegre 28/9/2020, 18:31

Obrigado pela publicação do excelente texto, que subscrevo!!
Gostaria de receber por e-mail se possível, notícias do vosso jornal!!
Muito obrigado!!


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