A Cruzada

Editor — 8 Setembro 2020

Em termos de argumentos argumentados, não se percebe o que pretendem as 100 “personalidades” que se arregimentaram para contestar a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento, dois anos depois de ter sido incluída no currículo do ensino secundário. A objecção de consciência que reivindicam fica aparentemente sem objecto se tomarmos por referência o elenco da disciplina.

Os temas do programa escolar que fizeram eriçar os signatários do manifesto não são, em si mesmos, sinal de nenhum progresso social, não “fracturam” nada na sociedade portuguesa actual. Mas foram o bastante para que uma centena de vozes sonantes cantassem em uníssono. O que as move está para além do tema que invocam.

O direito que reivindicam para “a família” de escolher a educação dos filhos tem a ver com uma única coisa: não perder a tutela ideológica sobre as novas gerações. E nesse propósito geral, consoante as variantes mentais dos signatários, cabe tudo, mesmo o que há de mais extremo e não confessado: machismo, sexismo, racismo, elitismo, anticomunismo…

A invocação da letra da Declaração Universal dos Direitos Humanos é pura hipocrisia, porque no espírito da Declaração (pesem as ilusões de uma declaração “universal” num mundo desigual) estava a intenção de libertar as novas gerações do pós-guerra do obscurantismo, da tirania, das tutelas religiosas, e promover a igualdade de direitos e de condições de vida. Era neste quadro que às famílias eram consignados direitos sobre a educação dos filhos. O que os signatários do manifesto defendem é o inverso: a família como núcleo da resistência a tudo o que cheire, mesmo vagamente, a igualdade ou progresso.

A defesa da família como célula da educação dos jovens ressurge assim com a sua face verdadeira: trincheira da família burguesa e, no caso, da família burguesa conservadora, reaccionária. É dessa que os signatários querem preservar os “valores” e os “direitos”. Há mais de 170 anos, os comunistas e o movimento socialista foram alvo da mesma acusação: “Querem destruir a família!” O Manifesto Comunista respondeu: quem destrói a família é o capitalismo. “Completamente desenvolvida [a família] só existe para a burguesia (…) todos os laços de família dos proletários são rasgados e os seus filhos transformados em simples artigos de comércio e instrumentos de trabalho”.

E, podemos acrescentar hoje, numa época de decadência geral do capitalismo e do regime burguês, mais destruídos são os laços familiares, por maioria de razão. Desemprego, salários e pensões de miséria, empregos precários, saúde por um fio, habitação degradada, educação selectiva, velhos abandonados, discriminação racial e étnica, retrocesso social, bloqueio do progresso, guerras destruidoras — quantas famílias resistem a tudo isto? que espécie de “família” é o grupo de pessoas que, nestas condições, mantém laços de sangue e vive na mesma casa?

Mas a carta cumpre outro objectivo, mais circunstancial, de natureza política. A direita portuguesa está a passar um mau bocado, entalada entre uma maioria parlamentar à esquerda, que parece para já inamovível, e um foco de extremismo fascista com tendência a ganhar adeptos. Nestas condições, não pode deixar de se ver a carta como um balão de ensaio: tentar unir a direita por cima das diferenças partidárias. E, para isto, nada melhor que um tema “de consciência”, de sentido “universal”, de propósito “anti-totalitário”, de reivindicação de “liberdade” contra “a tirania do Estado”. Tamanho leque ideológico tem a virtude de chamar gente de um arco que vai desde o reaccionarismo católico até à direita do PS — incluindo militares e a Igreja, e suscitando mesmo (que surpresa…) o “interesse” do presidente da República, fórmula cínica de dizer que apoia mas não se compromete.

Desta luta em duas frentes, contra a esquerda parlamentar e contra o deputado Ventura, só pode resultar uma aproximação à extrema-direita. Como se tem visto em toda a Europa, a pretexto de retirar base ao “populismo” a direita adopta gradualmente as ideias e até pontos programáticos da extrema-direita, acabando por diluir as fronteiras que hoje parecem separar uma da outra. Congregar a direita de todos os azimutes é o estandarte desta cruzada.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 9/9/2020, 9:03

A "nata" dos rentistas ao ataque!...
A "qualidade" dos 100 tem na sua "OBRA" a situação em que deixaram o País com a sua "brilhante" governação.
Tal como a "base social do Presidente Trump é a "América profunda", o PPD é o "Portugal profundo", um seu "retrato a preto e branco". Valha-nos Nossa Senhora dos Aflitos...


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