Trump, Biden: como travar o declínio do poder imperial

Manuel Raposo — 1 Setembro 2020

Marcha sobre Washington 2020: O sistema tem de mudar

O confronto entre Trump e Biden, com vista às próximas eleições presidenciais norte-americanas, tem sido apresentado nos media nacionais e na Europa como uma disputa decisiva entre a tirania e a democracia, entre a barbárie e a civilização, entre as ameaças de guerra e a paz, entre o caos e a ordem no mundo. Todas estas e outras tantas dicotomias avulsas resultam mais de interesses propagandísticos do que de verdadeiras análises políticas sobre o que está em jogo. Iludem por isso a realidade, nomeadamente ao induzirem a ideia de que existe uma diferença crucial entre as facções dirigentes dos EUA que alinham por republicanos ou por democratas.

Sabe-se o que Trump tem feito e imagina-se o que se propõe fazer num segundo mandato; mas não se sabe, nesta discussão distorcida, os reais propósitos da camada dirigente que promove Joe Biden. E quando se vê uma chusma de reaccionários e de criminosos de guerra (alguns, desertores de última hora das hostes republicanas) alinharem com o candidato democrata, há que perguntar que resultado se pode esperar do 3 de Novembro próximo. (1)

Pelo menos para os dirigentes europeus, Trump tornou-se um alvo de crítica fácil pela sua ignorância e maus modos. Mas, sobretudo, tornou-se politicamente indesejável pela hostilidade com que tem tratado a União Europeia e prejudicado interesses das classes dominantes do Velho Continente. Estas prefeririam, naturalmente, um regresso aos entendimentos de ontem e à “previsibilidade” de uma política externa norte-americana negociada nos organismos internacionais e através dos canais próprios (apesar do pontapé nas costas que foi a guerra ao Iraque de 2003, decidida unilateralmente por Bush contra boa parte dos interesses do capitalismo europeu).

Mas as preferências das classes dominantes da Europa, ditadas por razões muito próprias, estão longe de constituírem padrão para as classes trabalhadoras e os povos europeus. Para estes, obviamente, também não será Trump o “seu” candidato por tudo o que se conhece dele o dos respectivos apaniguados, sejam norte-americanos sejam europeus. Nesta circunstância, e até porque não têm qualquer interferência no voto, trabalhadores e povos europeus o melhor que têm a fazer é entenderem, o mais claramente possível, o que está em disputa e distanciarem-se daquilo que as suas classes dominantes lhes vendem como se fosse de interesse “para todos” e “para o mundo”.

Salientámos já noutro texto algumas das realidades que determinam a trajectória política recente dos EUA, para lá dos desatinos da personagem Trump. Uma, é o declínio evidente da hegemonia (económica, política, militar, moral) dos EUA, conquistada após 1945 e projectada depois de 1990 com o colapso da União Soviética. Outra, é a crise de todo o mundo capitalista em consequência de as decantadas “vantagens-para-todos” da globalização terem visivelmente chegado ao fim (sem, obviamente, terem sido “para todos”) e se colocar agora, entre as grande potências, a questão vital de saber quem vence quem.

Ora, em consequência disto, uma terceira realidade actual consiste na necessidade de o imperialismo norte-americano derrubar os fundamentos da ordem mundial que ele mesmo criou (na sua fase ascensional), por ter perdido capacidade competitiva e por se ver, por isso mesmo, num colete de forças. O imperialismo norte-americano, na verdade, sente que já não tira benefício dessa ordem na competição com os seus adversários. É essa a fonte do nacionalismo fascistóide, do proteccionismo económico, da ruptura de tratados e alianças que pareciam eternos, na busca de novos parceiros.

São estes factos que, inevitavelmente, vão determinar a conduta próxima dos EUA, com Trump ou com Biden às rédeas do poder.

Não é possível saber de antemão os métodos ou as medidas concretas do próximo presidente. Sabe-se que Trump, se reeleito, se sentirá com mandato e mãos livres para prosseguir na senda dos quatro últimos anos.

Mas percebe-se também que Biden não poderá fazer regressar os EUA a 2016. Se, como ele anuncia, tem o propósito de “unir os americanos”, terá de acolher boa parte das exigências reaccionárias e nacionalistas (nomeadamente das classes médias destroçadas pela crise económica) que levaram Trump ao poder, uma vez que não está nos planos dos democratas uma viragem à esquerda — nem sequer como a que Bernie Sanders anunciava (2) — para responder às reais necessidades populares.

E se quiser reconstruir a hegemonia dos EUA no mundo, Biden terá de pôr em marcha, não uma via de parcerias entre iguais, mas sim uma política de dureza económica, diplomática e militar acrescida que obrigue os potenciais aliados, designadamente na Europa, a alinhar com os EUA contra os seus principais rivais, isto é, a China e a Rússia — sem esquecer o combate aos “desalinhados” como o Irão, Cuba, a Coreia do Norte, a Síria ou a Venezuela.

Ou seja, as divisões que agora se distinguem entre as facções políticas dominantes dos EUA — acirradas, não esqueçamos, pelas necessidades da campanha eleitoral — respeitam a um só e comum propósito: como travar a decadência do poder imperial norte-americano.

———

(1) Na recente convenção do Partido Democrata que indigitou Biden, um dos temas fortes foi a crítica à “moleza” de Trump face à Rússia e à China e à perda de posição dos EUA nos confrontos em que estão envolvidos (Ucrânia, Síria, Coreia do Norte, Venezuela, Irão). Uma das estrelas foi Colin Powell, arquitecto da guerra ao Iraque. O reforço das capacidades militares da NATO foi outro mote, com vista a “recuperar a hegemonia” dos EUA no mundo.

(2) As propostas de Sanders configuram uma espécie de social-democracia à europeia. Mas basta isso para ser apontado como o mais acabado esquerdista, não só pelos republicanos, mas também pelos próprios parceiros democratas, que trataram de correr com ele em 2016 em favor de Hilary Clinton e agora em favor de Biden. Viu-se o resultado há quatro anos, veremos como será em Novembro. Na verdade, a facção da classe dominante que alinha pelos democratas prefere uma vitória republicana à “subversão” que um confronto Trump-Sanders causaria na sociedade norte-americana.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 6/9/2020, 21:55

No fundo a diferença reside apenas no nome dos dois partidos. Um é o Partido Democrático Conservador, o outro é o Partido Conservador Democrático.

Teresa Alves da Silva 8/9/2020, 11:53

Biden não é alternativa politica a Trump.
Talvez com diferentes apoios económicos e sociais é ....."mais do mesmo"....ficando garantido a continuação do sionismo, racismo e agressão militar internacional.....
Mesmo assumindo, o povo americano, de votar "no mal menor", a politica imperialista americana em decadência, como bem refere o artigo, e em colisão aberta com as instituições internacionais não tem saída. Biden não é alternativa.
Então que vença Trump , e não serão alimentadas falsas esperanças à grande maioria do povo americano. Se Trump ganhar , a mudança é mais urgente e inevitável , na medida que não há esperança, e as classes trabalhadoras americanas têm a possibilidade de equacionar as necessidades reais de um povo e a urgência de consciência politica, que traga respostas as condições de vida desse povo tão heterogéneo

leonel clérigo 14/9/2020, 9:37

"Então que vença Trump"..."para não serem alimentadas falsas esperanças".
Lastimo dizer mas tenho largas dúvidas sobre este entendimento "pedagógico" de Teresa Alves da Silva acerca da "aprendizagem" dos POVOS.
O Povo Estadunidense está hoje "organizado" sob uma ECONOMIA IMPERIAL que lhe deu e dá "vantagens" sem conta - naturalmente não "distribuídas" sem desigualdades internas .
Retirar essas vantagens e "obrigá-lo" a "contar com suas próprias forças", vai ser o Diabo. Nós, portugueses, não "gostávamos nada" do Salazar mas, quando se tratou de perder o Império, enchemos o Terreiro do Paço - com Hino e tudo - em nome do "Angola é nossa". Salazar - mesmo nos tempos áureos - nunca teve tamanha "unidade" para a "guerra consentida". De facto, foi para isso que ele lá esteve intocável à espera quase "meio século"...


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