Roubar um banco e fundar um banco

Urbano de Campos — 11 Agosto 2020

Quando o negócio prosperava

A longa questão do Banco Espírito Santo, que se arrasta vai para seis anos e se prolonga pelo seu sucedâneo Novo Banco, veio dar nova actualidade à afirmação de que roubar um banco não é nada comparado com fundar um banco (1). Aquilo que parecia ser uma falência entre outras (mesmo considerando o peso decisivo do BES na teia financeira portuguesa), acabou por ser uma verdadeira radiografia do mundo do capital — dos altos negócios, das grandes famílias do dinheiro, das ligações espúrias que mantém cá e lá fora, da corrupção que alimenta, dos governantes que compra, da rédea curta com que dirige o Estado.

A acusação a José Sócrates parecia ser, a princípio, apenas um caso de venalidade de um indivíduo ambicioso que aproveita a oportunidade que o poder lhe dá para subir na vida. Também terá sido isso. Mas o prolongar da investigação do caso Sócrates veio ligar fios de uma meada mais longa.

Sócrates, tal como o ex-ministro Manuel Pinho e o ex-gestor-de-sucesso Zeinal Bava (e certamente muitos outros) foram tentáculos de um polvo cuja cabeça, afinal, era o BES e a família Espírito Santo e, dentro desta, o capo Ricardo Salgado. Todos os meios foram postos a uso: subornos de milhões, ordenados extra pagos a ministros, multiplicação de empresas para escamotear movimentos de dinheiros, contas em paraísos fiscais.

Nada que o mundo do capital não tenha de há muito inventado e de que não faça pleno uso. Mas, à escala de um país como o nosso, a burla ganhou proporções de cataclismo: houve quem calculasse as fraudes do BES em perto de 6% do PIB português (quase 12 mil milhões de euros sobre 212 mil milhões). Cinco a seis vezes mais que a média do volume da corrupção na UE! (2)

O golpe, porém, não parou por aqui. As sumidades que decidiram criar o Novo Banco para acolher a “parte boa” do BES fizeram-no com o cuidado de não estragar o negócio sobre o que ainda era rentável. Sabe-se como o Estado ficou de cobrir generosamente, com um chamado fundo de resolução, as perdas que o NB pudesse (remotamente, dizia-se) vir a ter.

Na realidade, foi criado um mecanismo que convida os donos do NB a fazerem todos os negócios de favor que entenderem porque as perdas serão cobertas pelo Estado. Já lá vão, desta maneira, mais cerca de 3 mil milhões do erário público. Ricardo Salgado deve rir-se a bom rir por ver como a sua ciência continua a ter seguidores, mesmo com ele fora de jogo. Para que serve afinal o Estado senão para apoiar os homens de negócios, os empreendedores, a iniciativa privada, os que “correm riscos”? Sobretudo quando os riscos se consumam, obviamente!

Tudo fruto da cabeça retorcida de Ricardo Salgado e da ambição desmedida de uma família? Já se viu que não, pelo descaminho que foi dado ao NB. Mas há mais. Tem de se reconhecer um certo pioneirismo no exemplo do BPN.

Neste caso, a “família” era outra: proliferou à sombra de Cavaco e do cavaquismo. Lembremos: dois ex-ministros do impoluto homem de Boliqueime montaram o esquema — Oliveira e Costa (ministro das Finanças) e Dias Loureiro (ministro da Administração Interna). O resultado das inúmeras fraudes cometidas ao longo de uma dezena de anos, neste caso, cifrou-se em perto de 7 mil milhões de euros, pagos pelo Estado.

Juntem-se mais uns casos “menores” — BPP, Banif, BIC… — para completar o retrato. Não, não se trata de maçãs podres num cesto cheio de virtudes. Trata-se da própria natureza dos negócios. E não se trata apenas dos vícios da “finança”, porque todo o grande capital e boa parte do restante, de toda a espécie,  participou do regabofe enquanto ele pôde durar.

E é por isto que não se podem levar a sério as enérgicas reclamações de “mais fiscalização”, as impetuosas recriminações dirigidas aos “reguladores” e à sua “falta de vigilância”. Por uma razão: esses reguladores fazem parte do enredo, cumprem a sua missão por … omissão. De outro modo, seriam acusados de estragar negócios quando eles vão de vento em popa.

O BE e o PCP ao insistirem nesta tecla da “regulação” e ao deixarem de fora a denúncia de todo o sistema circulatório que alimenta negócios, fraudes e corrupção (em muitos casos impossíveis de separar) acabam por isentar o mundo do capital, em si mesmo, desta colossal usurpação de riqueza — seja a que é despendida para pagar os custos das falências quando o negócio se afunda, seja a que vai para os bolsos privados quando o negócio progride.

É fácil apontar a corrupção, a fraude e a má gestão como causas da falência BES. Agora. Mas quem se atreveria a colocar as mesmas causas na base do êxito do BES? É aqui que a denúncia de Mac the knife ganha pleno sentido — os Espírito Santo, os Oliveiras e Costa, os Dias Loureiro, os Rendeiro e os mentores que os protegem preferem, compreensivelmente, fundar bancos.

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  1. “O que é roubar um banco quando comparado com fundar um banco?”, frase de Macheath (Mac the knife), personagem da Ópera de Três Vinténs, de Bertold Brecht.
  2. Susana Peralta, economista, Público 17 Julho 2020

Comentários dos leitores

leonel clérigo 12/8/2020, 11:04

"Cataclismo" (!)..., designa bem Urbano Campos o "Projecto Político" Novembrista-75 que derrotou um Abril sem "Projecto" e proporcionou a sobrevivência do Poder e do "aparato" político-legal burguês e rentista que sobreviveu à queda do Império.
Mas vale dizer que a "erupção cutânea" abrilista - e até espalhafatosa e muito ignorante - não dispunha de Alternativa. Daí a "entrada mansa" das velhas forças do Império e do seu modo de vida rentista avessa a "arregaçar as mangas", a vestir o "fato-de-macaco" e assumir a Produção como única maneira do Burguês criar Valor ... e Mais-Valia, como convém a qualquer burguesia que "aspira" a não ser "rançosamente dependente".
O resto, é "criar Papel" à custa dos desgraçados dos eucaliptos...e, sobretudo, da grande maioria dos portugueses.

2 - Mas dado a "aversão" às "TEORIAS" que se abarbatou das cabeças da nossa Terra tornando-as com pouco "miolo por dentro" - como diz o Samba brasileiro "Na cabecinha da Dora" - nada surge de "esclarecedor". Nem sequer nos dignamos a relacionar a "respiração boca-a-boca" entre o "velho" Rentismo no Poder e a "aflição" de hoje do COMÉRCIO, dos RESTAURANTES e do TURISMO que Novembro fez "dominante" para salvar a pele ao seu guarda-chuva: o pequeno-burguês que, como sempre, conduz os Países à morte lenta.

3 - Quanto a mim, não conheço "concepção" que nos dê melhor "raio-X" do funcionamento do CAPITALISMO do que "O Capital" de MARX. E se pegarmos no seu LIVRO II lá está descrito logo no início - e em síntese - a "fórmula" que expressa o "segredo" deste Modo de Produção ou seja, como ele Produz e se Reproduz ou, seja ainda, como - através da EXPLORAÇÃO do TRABALHO ALHEIO - "cria" VALOR e MAIS-VALIA. E se quisermos desvendar os segredos de "hoje" da nossa Sociedade, temos que nos deixar de tretas "colaterais", assumirmos o seu estudo e pôr à prova o seu conteúdo na vida do dia-a-dia - como procurou acima Urbano Campos.
Em alternativa a isto, só vejo uma: deixar apodrecer o País até ao limite da podridão. Com esta Burguesia no Poder - venha ela dos "democratas" aos "fascistas" do inteligente André Ventura - não se espere coisa diferente por mais cosmética que se use: a sua vocação rentista resume-se hoje a "pedinchar turistas" e proporcionar-lhes "espectáculos internacionais" nas nobres "INDÚSTRIAS" do futebol e "corridas de automóveis".(1) O velho "Pão e Circo" dos fins do Império romano está de volta. Mau sinal...Ou será bom?...

(1) - Não posso deixar de ficar espantado ao ouvir a triste figura dos nossos governantes - com seus sábios argumentos - ao invocarem a "velha aliança" com a Inglaterra por esta "restringir" a entrada de "turistas" no País e a propósito da Covid-19. Além do mais, branqueiam com toda a desfaçatez e mais uma vez entre muitas, a nossa História, "esquecendo-se" da traição por nós feita ao "velho aliado" ao integrarmos a Armada Invencível. Devem pensar que a ciência da História dorme já o seu sono profundo até à eternidade.
Quanto aos nossos historiadores, continuam a "engolir" e como "bom petisco", que a segunda dinastia - de AVIZ - termina com um Cardeal-Rei, um Bragança de gema e "último" dos 4 BRAGANÇAS mascarados de Aviz às ordens dos Jesuítas que dominaram o Concílio de Trento, tristemente mal sucedidos na "Invasão" da Inglaterra ao contrário de bem sucedidos na longa decadência do País e da Ibéria.


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