A ascensão dos neofascismos

Manuel Raposo / Tom Thomas — 2 Agosto 2020

Combater o fascismo pela raiz

Dizia-se, até há pouco tempo, que Portugal estava imune à onda fascista que crescia pela Europa. A eleição em 2019 de um deputado pelo Chega!, um partido recém-formado, veio desmentir tal credulidade, mas foi encarada pelas forças políticas dominantes como um episódio sem sucesso que seria melhor ignorar. A subida que agora se lhe aponta nas sondagens (mesmo que contenha algum exagero) fez soar campainhas de alarme, sobretudo nos partidos de direita, que não mostram capacidade para conquistar ou sequer segurar o seu eleitorado, entalados entre um PS aparentemente hegemónico e um Chega! em crescimento.

Mas o caso não atinge apenas a direita e não é apenas, nem principalmente, questão eleitoral. A acreditar nas várias sondagens divulgadas, sectores populares significativos alinham pelo palavreado do deputado Ventura e acolhem a demagogia das suas propostas.

Isto prova que existe na sociedade portuguesa a mesma matéria-prima que noutros lados promove as forças de extrema-direita: 1) a decomposição social operada por um capitalismo em crise, 2) o descrédito que atinge as instituições, monopolizadas a bel-prazer e corrompidas pelo poder do capital, 3) a inexistência de uma alternativa revolucionária que aponte uma saída da crise saindo do capitalismo.

Ora, para as forças que se empenham em criar esta alternativa, importa conhecer a raiz donde parte este neofascismo. O texto que publicamos, extraído do livro de Tom Thomas “A ascensão dos extremos” (La montée des extrêmes, 2013) procura justamente mostrar a fonte de onde brota o neofascismo de hoje, como o fascismo de ontem: um capitalismo senil, em crise profunda, desacreditado aos olhos de largas massas, que tende a desenvolver a sua natural tendência totalitária quando já não consegue exercer o poder por via democrática.

 

A DIREITA EXTREMA E A CRISE

Tom Thomas

Os fascismos da década de 1930 (1), na Alemanha e na Itália, não foram inicialmente uma criação da burguesia, que já aí tinha esmagado as insurreições proletárias do pós-guerra, mas essencialmente uma emergência a partir “de baixo” (2), uma manifestação da raiva de uma massa heterogénea de indivíduos, causada pela crise e acentuada pelo sentimento de terem sido injustamente prejudicados e espezinhados pelos tratados do pós-guerra.

Um surto semelhante está a desenvolver-se hoje. Não é difícil de ver. Os sociólogos e outros observadores de movimentos sociais reconhecem prontamente que a ascensão de uma espécie de neofascismo é uma consequência da crise que faz milhões de indivíduos cair na escala social, para o nível do chão e até mesmo para baixo, suscitando medos, angústias e raiva contra grupos que o senso comum de mente estreita (populista!), incitado por alguns demagogos hábeis, aponta como responsáveis: os políticos podres, os estrangeiros, os desordeiros vermelhos.

Como não vêem as causas dessa crise, obviamente não conseguem propor nada que possa resolvê-la e travar o descalabro. Limitam-se a observar a coincidência, bem real, entre uma profunda crise do capitalismo desenvolvido e a ascensão de uma ideologia fascista e os comportamentos que dela resultam. Tampouco explicam por que razão a referida crise gera justamente essa ideologia. Não o conseguem, porque isso poria em causa a ideologia do Estado e da Nação que eles mesmos difundiram, e continuam a difundir.

Estado, Nação, Mercadoria

De facto, a ideologia fascista é uma manifestação exacerbada dos fetichismos do Estado, da Nação e da Mercadoria gerada pelas relações sociais de propriedade que definem o capitalismo. Fetichismos e relações que foram amplamente propagados e justificados em cerca de três séculos pelos ideólogos burgueses. Segundo esses fetichismos a Nação é uma comunidade de indivíduos que se associam voluntariamente por meio do Estado, embora ela seja apenas uma comunidade imaginada (3), uma vez que, na realidade, existem divisões de interesses privados concorrentes e antagonismos de classes.

De tal modo imaginária — mas o imaginário, no entanto, suscita comportamentos — que só tem existência concreta ou como Estado, um órgão externo a esses indivíduos, que os une apenas porque os domina e constrange, ou como patriotismo, isto é, o alistamento de indivíduos dominados na luta e na guerra contra os outros, para benefício exclusivo das classes dominantes (4), que o Estado organiza e impõe. Vimos que, segundo o fetichismo do Estado, ele deve e pode garantir o bem-estar das pessoas que domina. No fetichismo da Nação, isso significa o aumento do seu poder, na realidade o poder do chamado capital nacional.

E isso significa o desenvolvimento do imperialismo, da corrida aos suprimentos, aos mercados, à expansão da área de valorização do capital, ao mesmo tempo que a sua concentração também aumenta: a dominação do capital torna-se totalitária, e assume formas particularmente mortais, em escala global.

Exacerbar as tendências totalitárias

Em resumo, o fascismo não inventa nada. Simplesmente leva ao limite, exacerba ao ponto mais alto as tendências totalitárias inerentes à acumulação de capital. Essa “emergência a partir de baixo” de uma massa heterogénea de descontentes enraivecidos e imbuídos daqueles fetichismos que fundamentam a ideologia e o comportamento burguês ocorre quando — assustados, apavorados com os efeitos sobre eles de uma crise do capitalismo moderno — constatam que o Estado não desempenha o papel que essa ideologia lhes faz acreditar que deve e pode desempenhar: representar o seu poder, garantir as condições da sua existência (5). Eles não dizem: o Estado não é o que eu pensava que era; dizem: se o Estado é incapaz de me servir, se me abandona em vez de me apoiar, é porque está mal governado.

Então, ocorre a crise política, a rejeição da elite burguesa tradicional e da alternância direita-esquerda que nunca muda nada no sistema e nas suas taras. Exige-se a grande “varridela”, que saiam da liderança do Estado todas essas pessoas incapazes de corrigir a situação, mas tão capazes de se servirem do Estado para enriquecerem — a si mesmas, às suas famílias, aos seus amigos, aos seus clientes.

Esses descontentes enfurecidos, cheios de medos (da crise, dos imigrantes, dos ladrões, dos revolucionários, dos homossexuais …), imaginam que é simplesmente porque o Estado está nas mãos de políticos imorais e corruptos — empenhados em defender apenas os seus interesses e os da finança, mundializada e portanto apátrida (cosmopolita, dizia-se na década de 1930), empenhados em vender o interesse nacional à burocracia europeia (e tudo isso é claramente visível) — que o Estado não os representa, não resolve os seus problemas, nem se interessa por eles: abandona-os (o “sentimento de abandono”, como dizem os sociólogos, é próprio de quem espera tudo do Estado).

O mito dos “bons” líderes e dos “bons” capitalistas

A solução seria, portanto, essa grande “varridela” que permitiria que o Estado fosse confiado a bons líderes, probos, determinados a limpar os estábulos de Áugias, capazes de representar verdadeiramente o “todos”, a Nação, fortalecer a sua unidade para defender os seus interesses neste mundo repleto de concorrentes (sempre desleais, por definição), de financeiros cosmopolitas, de estrangeiros invasores, cucos querendo ocupar o seu lugar e tirar proveito de seus “ganhos sociais”, de inimigos conspirando a sua perdição.

Podemos aliás observar que, quanto mais na realidade a sociedade civil se divide e se desagrega — o que é obviamente o caso num período de crise em que se desenvolve o salve-se quem puder individual e se exacerbam antagonismos, inclusive dentro da elite burguesa dominante (por exemplo: liberais / estatistas neokeynesianos, pró e anti-europeus) — tanto mais a unidade só reside no imaginário da Nação e do seu braço armado, o Estado. O que os ideólogos neofascistas se empenham em reforçar.

A experiência histórica e a actualidade

Esses ideólogos proclamam, em todos os tons, que saberão restaurar o poder da Nação, retirando-a das garras dos financeiros, dos capitalistas mundializados adeptos de deslocalizações, dos imigrantes invasores; e apoiando, ao mesmo tempo, os “bons capitalistas”, aqueles que aceitariam investir virtuosamente pela pátria e na pátria.

Estes serão também protegidos da concorrência, que só pode ser desleal, dos competidores estrangeiros através dum proteccionismo reforçado. Qualquer opositor a essa chamada restauração será obviamente estigmatizado, até mesmo condenado e punido como antipatriota, desertor e agente estrangeiro. Assim, teríamos uma união para o bem comum em vez da disputa por postos; ordem e eficiência em vez de má administração; honestidade em vez de baixezas; vontade em vez de rendição; e, recompensa final, poder em vez de impotência, vitória em vez de derrota (6).

A experiência histórica deveria ter provado suficientemente como é ilusório e catastrófico esse tipo de ideologia, que pretende, por meios tão simplistas como brutais, criar uma terceira via “nem comunista nem capitalista, mas nacional e racional”. No entanto, o crescimento de partidos neofascistas em toda a Europa mostra que esse não é o caso.

O exemplo francês

Por exemplo, em França, enquanto a Frente Nacional sob a liderança do pai Le Pen era apenas um partido de extrema-direita, ultranacionalista e xenófobo — mas defendendo paradoxalmente um capitalismo “liberal” do tipo Reagan ou Thatcher — com a filha [Marine] Le Pen fascizou-se, quer dizer, procura conquistar uma ampla base popular (uma manobra que os media qualificam como “des-demonização”, quando é ainda mais diabólica).

Continua a estigmatizar os imigrantes, mas agora em nome da defesa da laicidade, para dar um ar mais progressista. Apresenta o seu ultranacionalismo como meio de progresso social e uma crítica aos grandes capitalistas globalizados. Evoca uma possível nacionalização de empresas “estratégicas” para tirá-las das garras dos financeiros apátridas. Fala sobre a modulação da taxa de imposto sobre as empresas de acordo com o destino dos lucros: alta se distribuída aos accionistas, menor se destinada a funcionários e investimento no território nacional. (…) Mostra o fortalecimento do proteccionismo como uma luta progressista contra o “dumping social e ecológico” de concorrentes estrangeiros. Apresenta a saída da Europa (que, para cúmulo, seria alemã, o velho inimigo) como a restauração do poder do povo contra a burocracia antidemocrática de Bruxelas. Denuncia em voz alta a impotência e a corrupção dos políticos do “UMPS” (7) que alternam entre dividir o bolo do Estado.

Tudo isso forma um discurso popular (que se apresenta, em muitos pontos, próximo do da Frente de Esquerda). É um discurso semelhante ao usado pelos fascistas alemães e italianos, antes de virarem a casaca quando chegaram ao poder. Não apenas porque eles não recuavam diante de nenhuma mentira, nenhuma promessa, para chegarem ao poder, mas porque o discurso era contraditório, era impossível pretender desenvolver um capitalismo que fosse bom para o povo. E o que é mais irracional é pretender fazê-lo por meios que restringem o crescimento e o poder do capital, quando estes são afirmados como os meios desse objectivo.

Um capitalismo muito diferente, hoje

Ora, este tipo de programa é ainda mais irracional hoje, se assim se pode dizer, devido a uma situação muito diferente do capitalismo. Para dar apenas um exemplo, organizar um capitalismo puramente francês, abandonando a União Europeia e o mercado globalizado — num momento em que a área de valorização do capital é necessariamente global, em que as empresas localizadas em França são apenas elos estreitamente especializados duma cadeia de valor global, em que cerca de 1/3 do consumo necessariamente vem de fora — conduziria a um agravamento considerável da crise e da miséria das massas.

De facto, a própria Le Pen prevê que o retorno ao franco só por si implicaria uma desvalorização de 25% (no mínimo!) em relação ao euro e, portanto, um aumento de 25% nos preços dos produtos importados (o que constituiria uma factura de cerca de 672 mil milhões de euros, 1/3 do PIB, dos quais 46 mil milhões apenas para energia).

As exportações, supostamente favorecidas por essa desvalorização, não preencheriam esse buraco, pois, pelo contrário, seriam prejudicadas por medidas de retaliação proteccionista. O capital financeiro imporia a sua força ao fazer explodir as taxas de juros da dívida denominada em francos, que seria uma moeda sem valor. O serviço dessa imensa dívida tornar-se-ia um fardo ainda mais insuportável do que hoje.

Daí, conflitos violentos de todos os tipos: internos, se fosse uma questão de a fazer suportar pelo povo; e externos, porque o ultranacionalismo, face aos problemas, conduz a afrontar o estrangeiro.

Atacar o totalitarismo pela raiz

Certamente, o fascismo não está do lado do racional, mas sim dos fetichismos mais exacerbados. O seu discurso pode, portanto, ser sedutor, quaisquer que sejam os argumentos que se levantem contra ele. Tanto mais que somente as elites intelectuais burguesas têm acesso aos meios de comunicação de massa e os seus argumentos “republicanos” fracassam por estarem, com razão, amplamente desacreditados como responsáveis pela crise e incapazes de lhe pôr fim. Argumentos que, além disso, dificilmente podem ser eficazes, uma vez que não podem criticar aqueles mesmos fetichismos, que essas elites compartilham e se esforçaram por difundir.

Assim, mesmo que o capital, agora mundializado, tenha ainda muito menos interesse no fascismo do que há um século atrás, mesmo que não contribua agora, na mesma medida de então, para levar Le Pen ao poder, mesmo se, mais do que então, “a burguesia só pode temer a estupidez das massas enquanto elas permanecerem conservadoras e a sua inteligência assim que se tornarem revolucionárias” (8), é, no entanto, muito possível uma evolução do totalitarismo aparentemente democrático para uma forma exacerbada, para um totalitarismo do tipo fascista.

O combate a esse totalitarismo não pode ser feito em nome daquilo que está na sua base e de que ele é apenas uma extensão. Devemos ir à sua raiz (ser radical), entendendo que ele é resultado da evolução do modo de produção capitalista e, portanto, que essa raiz são as relações sociais de apropriação que fundamentam esse modo de produção capitalista.

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(1) Para uma análise mais desenvolvida dos fascismos, ver Les Racines du fascisme, T. Thomas, éd. Albatroz, Paris, 1996.

(2) Foi apenas gradualmente que as grandes empresas apoiaram o fascismo. Intelectuais burgueses como o escritor austríaco Stefan Zweig ou o espanhol Ortega Y Gasset (cf. La Rebelión de las masas, 1929) eram bastante representativos da desconfiança inicial da sua classe face ao fascismo, que eles viam como uma espécie de democracia popular, um movimento político conduzindo a que massas sem instrução impusessem as suas ideias estreitas e gregárias aos nobres e refinados “valores” da verdadeira elite. O mesmo pensam hoje os seus sucessores acerca dos “populistas”, sem dúvida em vista dos “sucessos” obtidos por essa “verdadeira elite”!

(3) Existem dois tipos principais de ideologia para “justificar” a nação: a nação étnica (uma associação “natural” fundada no Volk, no sangue, na raça) ou a nação “cidadã” (associação construída, fundada sobre a história, a vontade, o projecto comum). Em termos legais: “lei do sangue” ou “lei do solo”.

(4) “Tomado individualmente, o burguês luta contra os outros, mas como classe os burgueses têm um interesse comum, e esta comunidade de interesses, que vemos no plano interno voltar-se contra o proletariado, volta-se no plano externo contra os burgueses de outras nações. É isto o que o burguês chama nacionalidade”. K. Marx, Sobre o livro de F. List O sistema económico da economia política [edição em português da Antígona, 2009, Crítica do nacionalismo económico, pág. 77].

O proletário também assume essa nacionalidade quando acredita que quanto mais poderoso for o capital do qual ele depende, maior e mais gordo for o seu senhor, mais migalhas ele terá.

(5) Simples mendigos são aqueles que esperam tudo do Estado e da sua aceitação voluntária dessa servidão (La Boétie).

“Desde 1931 […] o povo, animado por sentimentos revolucionários, voltou-se em massa para Hitler porque desejava revolta social, mas ao mesmo tempo temia uma mudança de tipo racional. Hitler eximiu-o da responsabilidade pelo seu próprio destino, cujo fardo o movimento revolucionário lhe impunha.” W. Reich, Os homens e o Estado, ed. Constantin Sinelnikoff, Nice, 1972, p. 124.

Hitler comprá-lo-á, depois de ter eliminado os oponentes antifascistas, saqueando por ele e com ele os povos conquistados (cf. Gütz Aly, Como Hitler comprou o povo alemão, ed. Flammarion).

(6) J. Primo de Rivera, considerado o pai do fascismo espanhol na década de 1930, escreveu: “Vemos a Espanha como uma gigantesca união de produtores […] nacionalização de bancos, de crédito. A mais-valia da produção deve permanecer em poder dos sindicatos […] Imporemos sem falhas uma nova ordem de coisas, sem pessoas famintas, sem políticos profissionais, sem caciques, sem usurários e sem especuladores”.

(7) Neologismo político francês. Junta as siglas da UPM e do PS para apontar esses dois partidos como representantes de um centro político indistinto. Uma espécie de Bloco Central (nota MV).

(8) K. Marx, O 18 de Brumário de Luís Napoleão Bonaparte.

Tradução e subtítulos da responsabilidade do MV


Comentários dos leitores

leonel clérigo 7/8/2020, 15:07

Lá bem no fundo, o que já se designou por "Marxismo Ocidental", tem seu fundo Social-Democrata e é anti-leninista.
Porque razão, no início da guerra de 14-18, Lenine impõe-se - como exilado em Zurique - a "tarefa política" de ler e anotar a LÓGICA de Hegel donde saem os "Cadernos sobre a dialéctica de Hegel"? Há quem diga que surge aí a ruptura com o "Marxismo Ocidental" - mais sua "Táctica" e "Estratégia" - que "vai orientar" a Revolução Russa. É o tempo "Do Direito das Nações a disporem de si próprias". Será isto a "Cartilha" do "populismo nacionalista?"


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