Não, o vírus não é democrático
Urbano de Campos — 30 Junho 2020
O aumento significativo de contaminações por covid-19, sobretudo na região de Lisboa, não parece ter muitos segredos: ele está a dar-se nas zonas de concentração de trabalhadores. Muitos deles nunca deixaram de trabalhar, nem mesmo durante o estado de emergência. Construção civil, áreas logísticas dos grandes abastecimentos, fábricas, transportes públicos são os focos e os veículos de transmissão. E as vítimas são, sublinhe-se, trabalhadores, muitos deles de sectores vitais, a quem o teletrabalho não contempla.
Se é verdade que o vírus, por si, não escolhe classes sociais (e daí a piada seca de que o vírus é democrático), também é claro que a organização social em que vivemos coloca os trabalhadores em posição muito mais vulnerável — e aí, sim, tem de se falar de uma diferenciação de classe, nada democrática, no que respeita à difusão da pandemia. Neste sentido, o coronavírus não é um simples agente biológico: é um agente biológico que actua através de um determinado meio social, tirando partido das desigualdades existentes e acentuando-as.
Os betinhos que se juntam à noite na praia de Carcavelos reúnem-se porque querem, porque lhes sobra tempo, porque se julgam de algum modo protegidos do mal e porque se estão nas tintas para os demais. Os funcionários públicos, os professores, os empregados bancários e todos os que continuam a trabalhar a partir de casa podem aborrecer-se por estar entre paredes, mas ficam ao abrigo do pior da pandemia.
Não é assim com os milhares de trabalhadores que rumam aos estaleiros de obras, à plataforma logística da Azambuja, aos portos de estiva, e têm para isso de se apertar em transportes públicos escassos e a abarrotar. Estes são obrigados a correr riscos, desde que saem de casa, para ganhar a sua vida e para assegurar a vida de todos os outros. Nisto, nada há de “democrático”.
O alarido que os media têm feito com as aglomerações de jovens ou com a festa de Odiáxere não tem tido paralelo com a denúncia, praticamente inexistente, das condições de trabalho e de transporte (já para não falar das condições de habitação) que afectam todos os dias milhares de assalariados. E, no entanto, são estas más condições que estão na base do novo surto da doença, uma vez que o “desconfinamento” — feito sob a pressão dos negócios — em nada alterou as condições de trabalho que vinham de sempre.
Nem outra coisa seria de esperar. Para o patronato, para as forças do poder e para os fazedores de opinião pública, é normal que toda aquela massa de gente tenha de sofrer em silêncio e na sombra a sua batalha pela vida. Haja ou não pandemias.
Comentários dos leitores
•afonsomanuelgoncalvess 1/7/2020, 13:44
Pretender contrariar os drs intelectuais da saúde que fszem garbosamente uso da linguagem política, acaba por ser um logro na medida em que uma asneira negada pela contradicão acaba noutra asneira como negação da primeira. Se a Sr^ D^. Dr^ da Direccao Geral de Saúde afirma com a sua sapiéncia que o vírus é "democrático" pq para ela democrático é ser livre, tolerante, defensor da igualdade de todos perante a lei, para além do pedantismo revela um estado cultural que só serve à mentalidade e à ideologia da classe dominante. Portanto contrapor o atributo "político" do virus acaba por cair no mesmo erro cultural do opositor.