EUA: tropas contra manifestantes?

John Catalinotto (*) — 8 Junho 2020

Há quatro dias, a Casa Branca chamou as Forças Armadas a intervirem nas cidades dos EUA para “dominar” as ruas. Nos três dias seguintes, dois ex-chefes do Estado-Maior Conjunto manifestaram-se contra esse destacamento. O mesmo aconteceu com o antigo e o actual secretários da Defesa de Trump, este último sabendo que arriscava a demissão. Reagindo à ameaça de Trump, pelo menos três organizações de veteranos antiguerra pediram aos militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional que se recusem a intervir contra os manifestantes que se opõem ao racismo.

Embora o presidente tenha parado de difundir as suas ameaças e algumas tropas federais e da Guarda Nacional tenham sido chamadas de volta aos quartéis, elas ainda podem ser usadas contra a população civil. O tumulto dentro do aparelho militar sobre a ameaça de Trump levanta duas questões principais: De onde vem essa oposição? O que significa para o movimento anti-racista a relutância dos generais?

Para responder à primeira: Os generais e almirantes temem que o uso da força militar contra a comunidade afro-americana e seus aliados possa destruir a coesão, seja ela qual for, das Forças Armadas. O Pentágono construiu um exército profissional — isto é, não-conscrito — nos últimos 45 anos desde a derrocada no Vietname. O uso de tropas — que são em 40 por cento ou mais constituídas por pessoas de cor — contra a população civil pode destruir o seu moral e fazer ricochete contra as chefias.

A relutância dos generais indica a possibilidade de o movimento de protesto chegar aos soldados da base. Enfraquecer o moral das Forças Armadas significa enfraquecer o controle mundial dos monopólios e bancos dos EUA — o que seria um passo em frente para os povos dos EUA e do mundo.

Dissidência em cima

O secretário de Defesa Mark Esper, sobre quem havia rumores de que estava de saída, contradisse abertamente Trump em 4 de Junho. “A opção de usar forças no activo numa função de imposição da lei deve ser usada apenas como último recurso”, disse ele, “e apenas nas situações mais urgentes e graves. Não estamos numa dessas situações agora. Não apoio a invocação da Lei da Insurreição” de 1807. (CNN)

Esper, normalmente um bajulador de Trump, só falaria assim se já estivesse sob pressão da hierarquia militar para travar o uso de tropas nas cidades. Os altos oficiais aposentados, que falam mais livremente sobre questões políticas do que os oficiais no activo, deram mais uma prova disso. Entre eles estavam o ex-chefe do Estado Maior Conjunto, almirante Mike Muller e o general Martin Dempsey, bem como o ex-secretário de Defesa James Mattis, os quais arrasaram Trump.

Ninguém deve iludir-se sobre os motivos desses oficiais. Eles passaram a vida a servir os interesses do militarismo e do imperialismo dos EUA. Enviaram tropas para guerras e ocupações ilegais contra a Jugoslávia, Iraque, Afeganistão e Síria e ameaçaram o Irão e a Venezuela. Desta vez, eles acham que as ordens de Trump de enviar tropas federais contra manifestantes anti-racistas ameaçam os próprios militares.

Resistência em baixo

A organização de veteranos contra a guerra About Face: Veterans Against the War fez circular uma petição dirigida aos membros da Guarda Nacional que dizia: “Pedimos-vos que defendam a vida dos negros baixando as armas. Sabemos as consequências que podem enfrentar por desobedecer a ordens. Muitos de nós já as enfrentámos”. Em 4 de Junho, cerca de 700 veteranos haviam assinado este apelo para recusar o serviço. (tinyurl.com/y9xkxxnc)

Veterans For Peace, outra organização deste tipo, divulgou uma declaração pedindo que “todos os líderes e pessoal militar recusem o destacamento. Nós, como veteranos, conhecemos as terríveis consequências de participar em acções moralmente erradas contra comunidades de outros países. Agora é a hora de recusar ordens injustas”. (veteransforpeace.org)

Courage to Resist relata, num artigo de 4 de Junho, que já está “actualmente a ajudar membros da Guarda Nacional que resistiram às ordens de Trump de atacar violentamente pessoas nas ruas de Washington, protestando pacificamente e legalmente contra a injustiça racial.”

E acrescenta: “Um dos guardas que se opõe às ordens de Trump originalmente esperava ingressar em missões médicas para auxiliar em desastres naturais. Falando da situação actual, ele diz: ‘Não posso fazer isso. Até olhar para o meu uniforme me deixa enojado por estar associado a isto, especialmente depois de [um Guarda Nacional] ter matado um homem que era dono duma churrasqueira’” em Louisville, Kentucky (couragetoresist.org)

Como actuam os manifestantes

Ninguém pode prever com certeza como os soldados sob disciplina reagirão às ordens do presidente. Que haja divergências no topo e que já exista resistência individual de membros da base é um sinal de que a resistência é possível, mesmo dentro de um exército “profissional”, não-conscrito.

Tenha-se em conta o líder revolucionário africano Amílcar Cabral, ao lidar com um desafio semelhante. Cabral foi o líder da organização que dirigiu a guerra de libertação contra o colonialismo português na Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Em 1963, apesar das enormes tarefas na construção de um movimento de guerrilha e no governo de territórios libertados do seu país, Cabral dedicou um tempo para apelar aos soldados e oficiais portugueses que ocupavam a Guiné-Bissau.

A sua mensagem, cuidadosamente explicada, pode ser resumida nisto: (1) As tropas portuguesas que continuam a combater os africanos no interesse das empresas imperialistas podem esperar nunca deixar a África vivos. (2) Quem desertar ou resistir receberá completo apoio e protecção do movimento de libertação.

Foram necessários mais 11 anos de luta, mas os militares portugueses, cansados da guerra, finalmente revoltaram-se contra o governo fascista de Portugal, derrubando-o e terminando as guerras contra as colónias africanas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Embora seja difícil prever o que acontecerá a seguir nos EUA, os eventos das últimas semanas mostram que nada é impossível. Um movimento que incentive e defenda os soldados que resistem e que apele às tropas, mesmo quando as enfrenta, pode fazer a diferença.

———

(*) John Catalinotto escreve em Workers World. É autor de “Turn the Guns Around: Mutinies, Soldier Revolts and Revolutions” (Virar as armas: motins, revoltas de soldados e revoluções), World View Forum, 2017. O apêndice do livro contém uma tradução em inglês do apelo de Amílcar Cabral em 1963 às tropas portuguesas.


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar