EUA: Não é motim, é rebelião!

Manuel Raposo — 5 Junho 2020

Este título é tirado de um artigo publicado pelo semanário comunista norte-americano Workers World que relata com detalhe os protestos desencadeados nos EUA, de costa a costa, em resposta ao assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis. Onze dias passados, as manifestações continuam por todo o país, apesar das ameaças brutais de Trump e da violência policial. Mais de dez mil pessoas foram detidas. Vários protestos de solidariedade ocorreram, entretanto, em diversas partes do mundo. Razões sérias levam tanta gente a vir para a rua, enfrentado polícia e pandemia.

O racismo, a brutalidade policial, patentes no modo como Floyd foi martirizado e linchado, à boa maneira dos supremacistas brancos, foram o rastilho que desencadeou os protestos. Mas são, sem dúvida, as desigualdades persistentes, as injustiças contínuas, as décadas de violência do poder que vêm ao de cima nestes protestos e que constituem a razão de fundo desta onda de revolta generalizada. Os EUA dão sinal de uma sociedade em ruptura.

A força dos protestos vê-se em dois ou três pontos:
As manifestações arrastam pessoas de todas as cores e etnias: as mais discriminadas e em geral mais pobres (negras, mestiças, latinas), mas também muitos brancos que repudiam as injustiças, as desigualdades, a violência, e sobretudo muitos jovens.

As forças policiais seguem abordagens diferentes de cidade para cidade: nuns casos usam a habitual brutalidade, mas noutros casos procuram contemporizar — incorporando-se nas manifestações ou dizendo “entenderem” os manifestantes, como em Minneapolis. Mesmo que isto não constitua uma recusa em cumprir ordens por parte dos agentes policiais de base, não deixa de ser um sinal de cautela por parte dos comandos.

Finalmente, as dissensões no próprio poder cimeiro, de que é exemplo a desautorização do presidente Trump pelo seu secretário da Defesa, ao negar-se a enviar os militares para a rua, e a acusação do general Mattis (ex-secretário da Defesa) de que Trump “divide o país”.

Repete-se agora nos EUA o que sucedeu em muitos países do mundo antes de ter surgido a crise sanitária. Factos aparentemente isolados ou sem novidade desencadeiam ondas de protestos maciços que se prolongam muito para além das suas causas próximas. São pequenos fósforos que ateiam incêndios incontroláveis a massas enormes de matéria combustível longamente acumulada.

França, Iraque, Argélia, Equador, Chile, Tunísia, Sudão … — dezenas de países de todos os continentes foram abalados, meses a fio, por manifestações que trouxeram à rua milhões de pessoas. Em muitos casos, com centenas de mortos às mãos das forças repressivas. O ódio, o legítimo ódio ao poder e às classes dominantes, expressou-se em todos estes casos nos mais diversos matizes.

As razões foram diferentes em cada país, mas em todos eles se pode adivinhar um fundo comum: milhões de pessoas sentem-se a viver num mundo falhado, sem futuro e sem presente. Sociedades destroçadas pela corrupção, pelo enriquecimento vertiginoso de minorias instaladas no poder, pelo empobrecimento de grandes massas populares, dilaceradas por agudos conflitos de classes. Instituições políticas caducas, falsas democracias (ou nem isso) que são monopólio de cliques burguesas detestadas, e nas quais a massa do povo não tem voz. É o que se vê em todas as geografias.

Descubra quem quiser as particularidades de cada caso, mas é inegável o traço comum de tudo isto: o capitalismo, presente e dominante em todo o planeta, de crise em crise, abeira-se a cada dia que passa da falência. E, pesem embora as enormes diferenças entre o mundo dito desenvolvido e o mundo periférico, arrasta consigo as sociedades, por mais diversas que sejam, para uma situação de caos.

Aquelas grandes manifestações traduzem justamente a percepção desse caos por parte de grandes massas populares que recusam ser arrastadas para o desastre. São os sinais de uma resposta — ainda descosida e, em muitos casos, sem rumo certo — por parte das diferentes classes despojadas dos diferentes países, que sentem não terem nada a perder. Podem não saber ainda para onde vão, mas já começam a dizer “Não, não vou por aí!” (*)

Mas se, como alguém autorizado disse, a luta dos proletários começa por ser nacional na sua forma, mas é internacional no seu conteúdo — então estamos a assistir à progressiva internacionalização da luta anticapitalista (**).

Ter os trabalhadores dos EUA como parceiros nessa luta é um avanço que os povos de todo o mundo só podem saudar da forma mais exultante.

———

(*) “A minha vida é um vendaval que se soltou. / É uma onda que se alevantou. / É um átomo a mais que se animou… / Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / — Sei que não vou por aí!”
Cântico Negro, José Régio

(**) “Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.” — Manifesto do Partido Comunista, K. Marx, F. Engels. Edições Avante!, pág. 47.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 5/6/2020, 17:59

Este acontecimento extremamente chocante que revoltou o mundo civilizado e o deixou completamente incrédulo perante esta crueldade repugnante, não permitiu a indiferença de muitas gerações e povos que se manifestaram violentamente em toda a parte com raras excepções incluindo Portugal,, que segundo F.Pessoa é nevoeiro. Todavia isso não significa que seja a decadència do capitalisno ou do imperialismo. Pelo contrário a falència do socialismo e do marxismo- leninismo desde a 2^ metede do séc. XX é que está em clara evidência. Não querer reconhecer isso revela a cobardia reles da geraçào do pós-guerra que traíu na Europa a continuidade da revolução.

leonel clérigo 7/6/2020, 13:22

O comentário acima do meu amigo Afonso Gonçalves (AG) é, penso eu, um desabafo de desencanto com a sua "geração" e, arrisco até, com o seu País. E, se não estou enganado, julgo até que AG não está só.
1 - Este "desabafo" de AG - se posso dizer assim - trouxe-me à memória o início de um interessante texto escrito em conjunto por Marx & Engels para o New York Daily Tribune na forma de uma série de artigos sobre a "situação" da Alemanha a partir de 1848. Este projeto foi sugerido em 1851 a Karl Marx por Charles Dana - um dos editores do Jornal Nova-iorquino - iniciando-se logo nesse ano a sua concretização que, em livro, irá ter o título "Revolução e contra-revolução na Alemanha".
2 - Todo o conteúdo do Livro de M&E pode ser resumido naquilo que mais tarde Lenine irá designar por "Análise concreta da situação concreta" e que o fará para a Rússia do seu tempo no "Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia" - ou o Presidente Mao o fará na sua "Análise das classes na sociedade chinesa".
Em Portugal - e na grande maioria dos países - essa "empreitada" não foi profundamente realizada pelos marxistas e, nas honrosas vezes que cá foi aflorada, a coisa parece não ter tido a "profundidade" necessária. Daí, a origem de boa parte da desorientação em que os comunistas e a esquerda navegam e onde o tal "nevoeiro" se empenha em inviabilizar qualquer rumo sério.
3 - Mas o problema não é só do "desleixo" em se procurar saber "onde se está" e "para onde se vai": aí, a nossa burguesia agradece para, sem oposição, nos conduzir para os "buracos" da sua fértil imaginação e que o tempo os vem tornando "sem fim". Há muitos mais problemas.
4 - Compreendo bem o "desabafo" de AG: um ano e meio de "ebulição" Abrilista - posteriormente comparada à "aparição" na azinheira - seguido de "encantado" e "sonhador" adormecimento de "meio século" Novembrista, leva-nos a concordar que, também nesta, se seguiu a "regra geral" das "revoluções modernas" à Portuga desde os inícios do sec. XIX: "muita parra e pouca uva".
Nós, portugueses, somos - não sei porquê?... - pouco dados à "reflexão" sobre os grandes acontecimentos que afectam a nossa vida colectiva. De facto, tudo parece indicar que a caminhada pelos "sete mares" esgotou-nos. E hoje, que a "realidade" tem tendência a colocar no seu devido lugar a "fantasia", mesmo assim o silêncio colectivo sobre o nosso futuro é ensurdecedor, em tudo semelhante - como diz a primeira nota de MR - ao "Cântico Negro" do Régio.
5 - Voltando à "Revolução e contra-revolução na Alemanha", podemos encontrar logo no seu início, a constatação da "derrota estrondosa sofrida (à época) em toda a frente de batalha... pelos partidos revolucionários do continente". Mas os autores logo referem de seguida: "Mas o que é que isso interessa? Não durou a luta das classes médias da Grã-Bretanha, pela sua hegemonia social e política, 48 anos?" E logo a seguir: "Hoje já não se atribui as revoluções à vontade nefasta de alguns agitadores". Sabe-se hoje que "todo o movimento revolucionário tem origem numa aspiração social, cuja realização é impedida por instituições decadentes".
E quanto às "causas" da derrota sofrida, os autores são claros: "Estas causas, não devemos ir procurá-las em meros elementos acidentais: esforços, talentos, erros, traições de alguns chefes - a cómoda (verdadeira ou falsa) resposta: foi o senhor tal, ou o cidadão tal que "traiu" o povo...- mas sim na generalidade da situação social e nas condições de existência de cada uma das nações interessadas na agitação revolucionária."
É esta "situação social" que deveria estar no centro das nossas preocupações. E fazermos o esforço para a pôr cá fora.

jmluz 12/6/2020, 12:38

Concordo com o comentário do LC
Como também acho oportuno que o MR tenha feito questão em citar Marx/Engels
para poder desfazer qualquer confusão que possa continuara a existir...
“Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.” — Manifesto do Partido Comunista, K. Marx, F. Engels.
Neste sentido e a exemplo da iniciativa do governo que mandou elaborar um projecto de programa para relançamento da economia e dos interesses da classe capitalista, o mesmo devia ser a nossa preocupação a bem dos interesses revolucionários do proletariado e do comunismo.
Manuel já respondi ao teu mail
Abraço

leonel clérigo 17/6/2020, 9:37

As "palavras" são o Diabo: à pala delas diz-se "sim" e o seu "contrário" e tudo fica a depender da "habilidade" e "subtileza" do "escriba".
Julgo que dizes bem, JML: hoje, à pala do Internacionalismo - onde reside agora esta coisa bem "progressista" confundida com o espectáculo da grande "internacionalização das trocas"? - a "luta nacional" pelo bem-estar das gentes foi empurrada para as tretas do dia-a-dia das grandes "batalhas democráticas" da Assembleia da República, como coisa "ultrapassada" e "senil". Alguém fala, debate e luta hoje com pés e cabeça por essa "coisa velha" que é o Desenvolvimento deste País e das suas gentes?
Fiem-se na Virgem e não corram...o trambolhão tem vida anunciada.


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