O banqueiro autocrata

António Louçã — 23 Maio 2020

Mesmo neste maio de 2020 a transbordar de fraseologia, se tivéssemos de escolher a frase do mês, sem dúvida ganharia a palma a de Mário Centeno sobre o Novo Banco: “Não permitirei que uma instituição bancária com as portas abertas possa ser prejudicada por um debate parlamentar”. Centeno tem bom remédio: acabe com o parlamento. Será nisso que está a pensar?

Tal como o “janota” dos dicionários imortalizou no português corrente a imagem de aperaltado que o general Junot deixara por cá no tempo das invasões napoleónicas, talvez também um termo “novobanco” venha a ser nos dicionários do futuro o sinónimo de regabofe e trafulhice.

Muito tem sido dito, e bem, sobre esses regabofe e trafulhice: como o buraco negro do banco foi fabricado com o negócio de conceder créditos incobráveis para os negócios escuros de uma camarilha cavaquista; como o paleio sobre o “risco sistémico” serviu para eternizar esse buraco negro; como o Estado faz um contrato a prometer que o banco receberá quase mil milhões de euros por ano, parte deles do OE; como mantém secreto esse contrato, para se poder pensar que ao banco basta estalar os dedos a pedir o dinheiro e não tem de dar explicações sobre as alegadas dificuldades que deveriam fundamentar o pagamento; como essas alegadas dificuldades podem ser invocadas, sem dizer quais, pontualmente, todos os anos, mesmo quando os administradores estão a quase duplicar os seus vencimentos.

Para além disso que tem sido dito sobre os mecanismos, sofisticados ou grosseiros, da fraude, há também alguma coisa a dizer sobre o modo como o regabofe e a trafulhice corroem os alicerces da democracia burguesa. É que os debates parlamentares são muito animados e muito folclóricos até ao preciso instante em que neles seja dito: “Antes de pagar, o Estado deve dar uma olhada nas contas”.

Porque, sendo isso dito, acabou-se a animação e o folclore. Nesse preciso instante, surgem os banqueiros questionados a queixar-se de que estão a ser usados como “arma de arremesso”. E surge Centeno a dizer: “Não permitirei”. Se se vislumbra a mais remota possibilidade de o parlamento, por uma vez, tratar seriamente este assunto, a voz dos banqueiros engrossa e aí vem o murro na mesa, para impor a ordem que o presidente, Ferro Rodrigues, não está vocacionado a impor naquele bazar.

É verdade que Centeno não é ainda o banqueiro-mor, porque não pode acumular tudo: presidente do Eurogrupo e ministro das Finanças português já seria overdose, para alguém que deve opor-se aos eurobonds em Bruxelas e defendê-los em Lisboa. Mas a cadeira de governador do Banco de Portugal já lá está, à espera dele. Mesmo sem o ser ainda formalmente, ele já é mais banqueiro do que os banqueirinhos do Novo Banco. Centeno é, mais do que a voz do dono, a voz e o dono.

Nesta crise ainda pareceu, por um breve momento, que o presidente da República e o primeiro-ministro iriam pôr os pés à parede, porque ambos, especialmente António Costa, foram desautorizados com o nariz de palmo que Centeno lhes fez em público. Dir-se-ia, por esse breve momento, que desprezar ao mesmo tempo parlamento, primeiro-ministro e presidente era, até para Centeno, ter mais olhos que barriga.

E afinal, que aconteceu? Todas as venerandas instituições da República meteram o rabo entre as pernas e, depois das iniciais reacções de mau humor, apressaram-se a atestar a Centeno a sua “confiança política e pessoal” (António Costa) ou a pedir para ele a “gratidão dos portugueses” (Marcelo Rebelo de Sousa).

Tudo isto para já não falar no Tribunal de Contas: não devia esse outro pilar da democracia exigir o tal contrato secreto, para saber se foi Passos Coelho quem lesou os interesses do Estado ao assiná-lo, ou se são António Costa e Centeno quem os lesa agora ao incumpri-lo?

E tudo também para não voltar a falar do parlamento: mesmo se não há condições políticas para uma moção de censura ao Governo, não as haveria para uma moção de censura ao ministro? Tem o parlamento de engolir em seco a declaração de confiança de António Costa?

Se Centeno ganhou, espectacularmente, um braço de ferro que pareceu ser contra tudo e contra todos, isso não se deveu à reacção provinciana de instituições democráticas deslumbradas com o seu carisma cosmopolita. E tão-pouco se deveu a que ele seja o super-homem, ou sequer o “Ronaldo das finanças”.

A explicação está em ser Centeno o líder político do capital, o condensado vivo das suas aspirações e o que melhor sabe falar com a voz grossa dos banqueiros quando a algaraviada parlamentar passa das marcas, mas sem se atrever a chegar àquela marca de pedir a sua saída.

Já em tempos tivemos o fenómeno de um ministro das Finanças que a imprensa alcunhou de “ditador financeiro” e que mandava no Governo sem ser primeiro-ministro, que depois foi primeiro-ministro a mandar no presidente, e entretanto substituiu o parlamento caótico por uma claque disciplinada com o cartão de um só partido. Durou quatro décadas.

Para acabar com os debates parlamentares desagradáveis aos bancos, Centeno meteu na ordem o parlamento, o primeiro-ministro, o presidente, mas ainda lhe faltará meter na ordem a imprensa. Muito fez ele, mas alguma coisa falta ainda fazer. E os banqueiros sabem fazer política, porque a fazem a todo o instante.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 29/5/2020, 9:12

O "ENGROSSAR da VOZ dos BANQUEIROS"
O que coloquei acima, é retirado do texto do A. Louçã que diz também de Centeno ser ele "mais banqueiro do que os banqueirinhos do Novo Banco. Centeno é, mais do que a voz do dono, a voz e o dono."
Se esta profecia se confirmar, estamos bem lixados. Já estou a ver e pelo "andar da carruagem", o "olhinho" dos RENTISTAS do costume a "brilhar" com o "PAPEL" que vai chegar da Europa. Se julgarmos que com isso o País vai ter uma "ajuda" ao seu DESENVOLVIMENTO sério, "tirem já o cavalinho da chuva". Não nos admiremos se essa "massa" for gasta em "novos carrilhões" de Mafra...para "turista ver". Já há quem por aí esteja a afiar a faca...
Quanto ao "APARELHO PRODUTIVO" e a um seu PLANO com pés e cabeça, nem pensem: isto está muito acima das capacidades da nossa burguesia eternamente "descabelada". E quem o poderá fazer? Há por aí algum adivinho?...

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 24/2/2021, 6:04

Excelente.


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