Crónica da pandemia
Duas espinhas na garganta, ainda assim
Manuel Raposo — 2 Maio 2020
Com argumentos de defesa da saúde pública, a direita (mas não só a direita) atirou-se às comemorações do 25 de Abril e do Primeiro de Maio, classificando os promotores de irresponsáveis e de “darem um sinal errado” à população quando se pede a todos que fiquem em casa.
Pouco interessou aos críticos que as regras de afastamento físico fossem respeitadas em qualquer dos casos. Tal como não lhes interessa o facto de, todos os dias, milhares de trabalhadores que permanecem em actividade se acumulem em transportes públicos escassos e em locais de trabalho sem condições de segurança sanitária.
Obviamente, o propósito não era defender a saúde de ninguém, mas aproveitar o estado de emergência para diminuir as duas datas: precisamente por serem evocações, na sua origem, populares e que demarcam a fronteira com o regime fascista. Por muito simbólicas que as comemorações sejam hoje, elas são ainda a marca de um período da nossa história recente que a burguesia de uma forma geral, e a direita especialmente, gostariam de ver apagada.
No caso do 25 de Abril, o ataque dirigiu-se à Assembleia da República, sobretudo na pessoa do seu presidente — alimentando, ironicamente, a campanha, de longa data, de bota-abaixo do parlamento, que noutras circunstâncias toda a burguesia jura defender.
O CDS lançou-se mesmo num abaixo assinado contra as comemorações (absolutamente formais e iguais às que a AR sempre tem promovido) sem outro propósito que não fosse obter publicidade fácil na sua disputa de votos com a extrema-direita. Impossibilitados os desfiles populares de todos os anos, a direita quis, não satisfeita, apagar por completo a evocação da revolta dos Capitães e, sobretudo, do movimento popular que se lhe seguiu.
Se neste caso a disputa se deu entre pares parlamentares, no que toca ao Primeiro de Maio os visados foram claramente os trabalhadores e o movimento sindical. E, tendo a UGT optado pelo “tele-trabalho”, restou como alvo a CGTP. Os argumentos, repartidos entre o cinismo e a imbecilidade, foram desde as estafadas “razões sanitárias” até à afirmação de que os actos promovidos pela CGTP “não serviram para nada”, passando pela crítica da “falta de flexibilidade” da central sindical.
Mas o argumento talvez mais definidor do estado de espírito, inquieto, da burguesia portuguesa foi este: os actos públicos da CGTP foram “um desafio à autoridade do Estado” (*). O patronato — que clama por menos Estado quando os negócios correm de feição — exige agora o máximo de Estado para o salvar da falência. E como isso só pode ser feito à custa dos trabalhadores, é preciso que a “autoridade” do Estado se afirme desde já e a cada momento.
Todo este nervosismo por uma razão só: mesmo simbolicamente, o Primeiro de Maio foi assinalado e a situação dramática que milhões de trabalhadores e de pobres vivem sob o estado de emergência foi, ainda assim, trazida a lume.
Não, a calamidade sanitária não toca a todos por igual — e essa realidade precisa de ser posta em primeiro plano, para que sejam os próprios trabalhadores a assumir o combate às violências patronais que estão em curso sob o manto do estado de emergência. Violências que serão multiplicadas amanhã quando estiver à vista em toda a sua extensão a crise económica do capitalismo, nacional e internacional, e a crise social que ele arrasta consigo.
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(*) Pedro Norton (RTP3, 1 de Maio). Membro do conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian, comentador e colunista em TVs e jornais. Esteve ligado à banca de investimento, foi administrador da Sojornal e Impresa (Expresso e SIC).