Um detonador da crise potenciado pelo lucro

Claudio Katz (*) — 3 Abril 2020

A crise económica mundial aprofunda-se a um ritmo tão vertiginoso como a pandemia. Já ficou para trás a redução da taxa de crescimento e a travagem brusca do aparelho produtivo chinês. Agora, caiu o preço do petróleo, colapsaram as Bolsas e o pânico instalou-se no mundo financeiro. 
Há quem sugira que o desempenho aceitável da economia foi abruptamente alterado pelo coronavírus. Também estimam que a pandemia pode provocar o reinício de um colapso semelhante ao de 2008. Mas nessa ocasião foi imediatamente visível a culpa dos banqueiros, a gula dos especuladores e os efeitos da desregulação neoliberal. Agora, só se discute a origem e as consequências de um vírus, como se a economia fosse mais um paciente afectado pelo terramoto sanitário.
 
Tensões e desequilíbrios acumulados

Na realidade, o coronavírus detonou as fortes tensões prévias dos mercados e os enormes desequilíbrios que o capitalismo contemporâneo acumula. Acentuou uma desaceleração da economia que já tinha debilitado a Europa e posto em xeque os Estados Unidos.
 
O divórcio entre essa retracção e a contínua euforia das Bolsas antecipava o estoiro da típica bolha que Wall Street periodicamente infla e rebenta. O coronavírus precipitou este colapso, que não obedece a nenhuma maleita imprevista, só repete a conhecida patologia da financeirização. 
 
Diferentemente de 2008, a nova bolha não se localiza no endividamento das famílias ou na fragilidade dos bancos. Concentra-se nos passivos das grandes empresas (dívida empresarial) e nas obrigações de muitos Estados (dívida soberana). Além disso, há sérias suspeitas sobre a saúde dos fundos de investimento, que aumentaram a sua preponderância na compra e venda de acções.
 
A economia capitalista gera estes tremores e nenhuma vacina pode controlar as convulsões desencadeadas pela ambição de lucro. Mas a miséria, o desemprego e os sofrimentos populares que estes terramotos provocam ficaram agora diluídos pelo terror que a pandemia suscita.
 
Determinantes da crise: financeirização e sobreprodução

Também a queda do preço do petróleo antecedeu o tsunami sanitário. Dois grandes produtores (Rússia e Arábia Saudita) e um jogador de peso (Estados Unidos), disputam a fixação do preço de referência dos combustíveis. Essa rivalidade quebrou o organismo que continha a desvalorização do petróleo bruto (OPEP mais 10).
 
A sobreprodução que precipita este embaratecimento do petróleo é outro desequilíbrio subjacente. O excedente de mercadorias — que se estende desde os bens intermédios até às matérias-primas — é a causa da grande batalha que coloca Estados Unidos e China frente-a-frente.
 
Os dois principais determinantes da crise actual — financeirização e sobreprodução — afectam todas as empresas, que atascaram os mercados com o papel dos títulos ou se endividaram para gerir os excedentes invendáveis. O coronavírus é totalmente alheio a estes desequilíbrios, mas sua aparição incendiou a mecha de um paiol saturado de mercadorias e dinheiro. 
 
Efeitos da globalização

Vários especialistas destacaram também como as transformações capitalistas das últimas quatro décadas influem sobre a magnitude da pandemia. Observam que as contaminações anteriores — separadas por períodos de tempo prolongados — irrompem agora com maior frequência. Ocorreu com a SARS (2002-03), a gripe suína H1N1 (2009), o MERS (2012), o Ébola (2014-16), o zika (2015) e o dengue (2016).
 
É bem visível a conexão destes surtos com a urbanização. A concentração da população e a sua forçada proximidade multiplica a disseminação dos germes. Também se torna evidente o efeito da globalização, que incrementou de forma exponencial o número de viajantes e a consequente expansão dos contágios a todos os cantos do planeta. A forma como o coronavírus provocou em poucas semanas o colapso da aviação, do turismo e dos cruzeiros é um contundente retrato deste impacto.
 
O capitalismo globalizou de forma vertiginosa muitas actividades lucrativas, sem estender essa reformulação das fronteiras ao sistema sanitário. Pelo contrário, com as privatizações e os ajustes fiscais aumentou, em todos os países, a desprotecção perante doenças que se mundializam com inusitada velocidade.
 
Alguns estudiosos também recordam que, logo após a SARS, foram abandonados vários programas de investigação para conhecer e prevenir os novos vírus. Prevaleceram os interesses dos conglomerados farmacêuticos, que dão prioridade à venda de medicamentos aos doentes solventes. Um exemplo patético desta primazia do lucro observou-se nos Estados Unidos no começo da presente pandemia com a cobrança do teste de detecção do coronavírus. Esta falta de gratuitidade reduziu o conhecimento dos casos num momento chave para o diagnóstico.
 
Outros especialistas destacam como se destruiu o habitat de muitas espécies selvagens, para forçar a industrialização de actividades agropecuárias. Esta devastação do meio ambiente criou condições para a mutação acelerada ou a formação de novos vírus. 
 
A China foi um epicentro destas mudanças. Em nenhum outro país convergiu de forma tão vertiginosa a urbanização com a integração nas cadeias globais de valor e a adopção de novas normas de alimentação.
 
Na nata do establishment, o coronavírus já recriou o mesmo temor que invadiu todos os governos durante o colapso financeiro de 2008. Por isso se repetem as condutas e se dá prioridade ao socorro das grandes empresas. Mas existem muitas dúvidas sobre a eficácia actual deste libreto.
 
Com menores taxas de juro procura-se contrariar o colapso do nível de actividade. Mas o custo do dinheiro já se situa num plano [tão baixo] que torna incerto o efeito reactivador de um novo abaixamento. As mesmas incógnitas geram a injecção maciça de dinheiro e a redução de impostos.
 
Cada um por si

O dólar e os títulos do tesouro dos Estados Unidos converteram-se novamente no principal refúgio dos capitais, que buscam protecção diante da crise. Mas a primeira potência é comandada na actualidade por um mandatário brutal, que utilizará esses recursos para o projecto imperial de restaurar a hegemonia norte-americana.
 
Por essa razão, diferentemente de 2008, prevalece uma total ausência de coordenação face ao colapso que paira sobre a economia. A sintonia que o G20 exibia foi substituída pelas decisões unilaterais que as potências adoptam. Impôs-se um princípio defensivo de salvação à custa do vizinho. 
 
Não só os Estados Unidos definem medidas sem consultar a Europa (suspensão dos voos), mas também os próprios países do velho continente actuam cada um por sua conta, esquecendo a pertença a uma associação comum. Todas as consequências de uma globalização da economia — no velho quadro dos estados nacionais — afloram no tremor actual. Ninguém sabe como o capitalismo lidará com este cenário. 
 
As terríveis consequências da crise para a economia latino-americana estão à vista. O colapso dos preços das matérias-primas é complementado por maciças saídas de capital e grandes desvalorizações da moeda no Brasil, no Chile e no México. O colapso que sofre a Argentina começa a transformar-se num espelho de padecimentos para toda a região.
 
A doença permanente da sociedade actual

É evidente que o coronavírus golpeará os mais pobres e produzirá tragédias inimagináveis se chegar aos países com sistemas de saúde inexistentes, deteriorados ou demolidos. Pela elevada contagiosidade da pandemia e o seu forte impacto sobre as pessoas mais velhas, a estrutura hospitalar já tropeça, mesmo nas economias avançadas.
 
Quando do surgimento do coronavírus multiplicaram-se as interrogações sobre o comportamento dos diferentes governos. Houve fortes indícios de irresponsabilidade, ocultação de dados ou demoras na prevenção para não afectar os negócios. Mas a drástica reacção posterior começa a aproximar-se de um manejo de economia de guerra. Nesta viragem teve influência o contágio sofrido por vários membros da elite: ministros, gestores e figuras do espectáculo. 
 
Também os meios de comunicação oscilam entre a ocultação dos problemas e o estímulo do terror colectivo. Alguns extremam esse medo para propagar declarações racistas, hostilizar a China ou difamar os imigrantes. Mas todos assacam ao coronavírus a responsabilidade pela crise, como se o capitalismo fosse alheio à convulsão em curso.
 
Os poderosos buscam bodes expiatórios para se eximirem dos dramas que originam, potenciam ou mascaram. O coronavírus é o grande perigo do momento, mas o capitalismo é a doença permanente da sociedade actual.
 
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(*) Claudio Katz é um economista marxista e analista político, professor na Universidade de Buenos Aires, Argentina.
Texto original em castelhano na página Web: www.lahaine.org/katz. Tradução e subtítulos Mudar de Vida


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