Justiça: isto não vai com limpa-nódoas

Manuel Raposo — 10 Março 2020

A preocupação de Catarina Martins com a má imagem da Justiça chega a ser comovente. Em vez de ver nos casos de corrupção recentemente revelados a ponta de um iceberg, o espelho de um mal de fundo, o exemplo prático de um sistema que funciona para os poderosos, que é manipulado pelos poderosos — em vez disso o BE esforça-se por ajudar a limpar a nódoa que ficou a descoberto.

O senso comum queixa-se da Justiça principalmente pela demora, pelo arrastar dos processos, pelas habilidades dilatórias. A massa trabalhadora sente por vezes na pele o que significa entregar um processo de falência aos tribunais, as dezenas de anos que chega a demorar uma decisão de indemnizar trabalhadores postos na rua por patrões que desmantelam empresas e deslocam (“legalmente”) capitais de um lado para outro. Os negros, os ciganos, os pobres e as mulheres maltratadas sabem o que é cair nas malhas da polícia e da Justiça. Mas poucas vezes o público se apercebe, de uma forma geral, do que vai, por dentro, na máquina da Justiça.

O que as recentes revelações puseram a nu — juízes reformados que ganham milhares em arbitragens privadas, juízes no activo escolhidos a dedo para assegurar decisões de favor, etc., tudo envolvendo as altas esferas do aparelho — é portanto raro e precioso: protecção entre os pares, manipulação de procedimentos que, para fora, se apresentam como isentos e impolutos.

Mais: sabia-se já de juízes que estavam envolvidos em esquemas escuros, ou nas tramóias do futebol, ou em actos de corrupção; mas a esses casos aplicava-se como sempre a teoria das maçãs podres, entendidas como excepções num mar de probidade. Agora, porém, ficou a saber-se da teia de protecções que o próprio aparelho tece — o que legitima a dúvida sobre quantos outros casos permanecem na sombra.

Em vez de tomar isto como motivo para uma denúncia da natureza opaca, classista da Justiça, o BE optou por moralizar. Deu-se mesmo ao trabalho, para mostrar serviço, de avançar soluções, sugerindo aos suspeitos que, “por prudência”, suspendam funções — “com inteiro respeito pela separação de poderes”, como cuidou de sublinhar Catarina Martins. Prudência para quê? “Para haver confiança dos cidadãos na sua (sic) Justiça”, como disse a líder do BE numa feira de queijos em Celorico da Beira.

Em vez de ver nos factos revelados o resultado de a Justiça ter passado praticamente incólume pelo 25 de Abril, e daí tirar razão para reclamar uma limpeza do aparelho de alto a baixo, o BE procura lavar-lhe a cara, preocupado com o “natural alarmismo” que o conhecimento público da podridão possa suscitar.

Em vez de ver em toda esta miséria mais um sinal de um sistema político caduco, de uma democracia monopolizada pelos poderosos que exclui de todas as decisões a massa popular e a reduz a espectadora dos actos do poder, em vez disso o BE aproveita a ocasião para se mostrar “responsável” e debitar pedagogia inócua sobre o que deveria ser um sistema de justiça confiável para “toda a gente em Portugal”.

Depois admiram-se de serem aventureiros como André Ventura a tirar proveito da (real) podridão do sistema político.


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