Eutanásia: pela livre decisão de cada um

Urbano de Campos — 2 Março 2020

Como é bom de ver, o que esteve em causa na discussão sobre a despenalização da eutanásia não foi o “direito” de matar alguém, mas sim o direito de cada um decidir sobre a sua própria vida em situações limite. Tão só. A mistificação que sobre isso se fez, por parte de igrejas e confissões religiosas diversas e de organizações políticas, só mostra o propósito de tais forças manterem a sua tutela moral sobre cada um dos cidadãos.

Com a aprovação da lei, não é o Estado que passa a decidir da vida das pessoas, como muitos agentes de má-fé foram dizendo. Ao contrário, esses agentes é que queriam, através do Estado, continuar a manter a sua tutela sobre os indivíduos e sobre a sociedade por inteiro.

Perante tudo isto, a posição e os argumentos do PCP tornam-se ainda mais incompreensíveis.

As igrejas

A igreja católica e as demais confissões religiosas, que vivem de parasitar a consciência das pessoas, esqueceram divergências dogmáticas e moveram Céus e Terra para travar a votação na Assembleia da República. Arregimentaram escassas centenas de novos e velhos que só diziam baboseiras sobre o assunto. Padres lançaram condenações a partir dos púlpitos e distribuíram panfletos aos fiéis. Quiseram referendar aquilo que sempre declararam não-referendável porque era esse o terreno em que poderiam lançar a confusão nas mentes e daí tirar o proveito que sempre tentam tirar.

Que lucro ambicionam com tudo isto? Pelo menos este: manter sobre as consciências individuais de quem ainda os tolera uma espécie de magistério do medo. Porque — no fundo, no fundo — é no medo da morte, e no culto do medo perante a morte, que assenta a força de todas as igrejas. A aprovação da lei, neste caso, representa também uma machadada no obscurantismo, na irracionalidade e no espírito de submissão.

Os liberais

Todo o bom burguês que se declara “liberal” se mostrou muito pouco liberal na circunstância. Percebe-se: liberalismo, só para a “iniciativa privada”, para a defesa da propriedade, para a concorrência entre negócios, para a liberdade de investir e desinvestir, para fugir aos impostos, para deambular por paraísos fiscais, para empregar e despedir a bel-prazer. Ou seja, liberdade plena para a minoria que vive de negócios, porque a maioria está impedida de praticar tal liberalismo, desde logo porque não tem meios para isso.

Os interesses

Os hospitais privados, tiveram o desplante de se colocarem antecipadamente à margem da lei, declarando que nos seus serviços não haveria morte assistida. Mas não são obrigados a cumprir as leis do Trabalho, mesmo que “moralmente” discordem delas? Porque se atreveram então a uma declaração de incumprimento de uma lei ainda a ser votada? Obviamente, para exercer uma pressão inadmissível sobre os poderes públicos. Veremos se as autoridades do Estado, tão lestas a ver violações da lei em qualquer greve mais ousada, vão chamar à pedra os senhores gestores e patrões desses hospitais.

Mais interesses

A Ordem dos Médicos alinhou igualmente na campanha, como se falasse em nome dos seus membros. Mas um inquérito feito em 2018 a cerca de 1200 médicos, na região Norte, constatou que a maioria deles (51%) é favorável à despenalização e apenas um terço contra. A Ordem, de modo evidente, desprezou este indicador e resolveu falar por cima dos seus associados para se fazer eco dos negócios privados.

Ainda os interesses

As Misericórdias e as demais instituições privadas de assistência fizeram coro com as igrejas, os hospitais privados e a Ordem dos Médicos. Nada mais natural: os mesmos que fazem da medicina e da assistência um negócio rendoso, os mesmos que fazem da doença (não da saúde) um modo de vida lucrativo, são os que defendem a estabilidade do negócio — mesmo que a eutanásia seja, como será seguramente, uma excepção. É que para todo este bando de interesses o que está em causa é o princípio da questão, que se pode formular assim: deves permanecer vivo enquanto puderes render.

O não do PCP

Não se pode dizer que o PCP, que votou contra todas as propostas de lei, tenha alinhado com estes interesses. Mas nenhum dos argumentos que insistentemente foi expondo (já desde 2018) teve o condão de clarificar o que estava em jogo. Não admira pois que, dois anos volvidos, o Avante (13 Fevereiro 2020) tenha sentido a necessidade de repisar argumentos diante das “incompreensões e equívocos” que reconhecia subsistirem.

Porém, apesar de repetir à exaustão que o problema era “muito complexo” e de “grande sensibilidade”, o PCP não contribuiu para simplificar e desdramatizar a questão — em nada ajudando a libertar o assunto da teia de condenações em que a direita e as organizações religiosas o quiseram prender. Pelo contrário.

No meio de arrazoados por vezes incompreensíveis, acabou sim por colocar, ele próprio, a questão num campo puramente moral, paredes-meias com as posições confessionais de “defesa da vida”. É o que se espelha no apelo “Não matem” feito por Jerónimo de Sousa…

Alarmando os espíritos com os perigos de uma “indústria da morte”, o PCP esqueceu-se dessa outra indústria, já realmente existente, que prospera com o prolongamento da vida contra a vontade dos próprios.

Argumentando com os deveres do Estado no domínio da saúde e da assistência (quando nada disso tem de ser posto em causa), e determinando que a eutanásia “não é uma necessidade social”, optou por iludir o plano em que a questão da eutanásia realmente se coloca: o plano pessoal, individual e limite.

Não é com a vaga alusão a uma “sociedade determinada pelo capitalismo” ou a uma “deriva economicista” do Estado a respeito do SNS (Avante, idem) que se anula o direito de uma pessoa a determinar a sua própria vida — nomeadamente quando ela chegou a um ponto insuportável.

Os argumentos “sociais” que o PCP, no caso, expendeu contra o direito individual de dispor da própria vida, são na verdade pseudo-sociais. Porque desenvolvimento social e desenvolvimento individual não são separáveis — um dá sempre a medida do outro. Mesmo não estando em causa, no caso vertente, pôr fora de cena a “velha sociedade burguesa”, é sempre bom ter presente o que Marx e Engels disseram, vai para 180 anos: “o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos” (Manifesto do Partido Comunista, edições Avante, 1997).

Argumentos à parte, o PCP, que politicamente já se colocou em má companhia, arrisca-se a novas “incompreensões e equívocos” daqui por algum tempo. É que a lei tem de passar pelo crivo do presidente da República — católico, de direita, sedento de votos. As forças que se mobilizaram contra a lei não vão desistir de a ver chumbada. A história tem portanto mais capítulos.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 2/3/2020, 19:27

NÃO À TORTURA, SIM À EUTANÁSIA.


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