E não se pode chumbá-lo?

António Louçã — 6 Janeiro 2020

A chantagem de António Costa para impor um orçamento anti-popular é, mais uma vez, o papão da direita, que voltaria ao poder se a esquerda votasse contra. Voltaria mesmo? Seria precisa muita ingenuidade e cobardia política para acreditar nesse automatismo e capitular perante a chantagem. A alternativa é a luta, que pode perder-se, mas que se perde sempre quando não se tenta.

Chumbar um orçamento não equivale forçosamente a derrubar o Governo que o propôs. Formalmente, quem o chumba não está a aprovar uma moção de censura: está a dizer ao Governo que vá lá refazer o trabalho de casa e volte a apresentar-se com novo orçamento. O orçamento não é uma vaca sagrada e, a prová-lo, está a grande instituição nacional do Orçamento Rectificativo, uma e outra vez tirado da cartola sempre que orçamentos mal atamancados, e são tantos, começam a meter mais água do que permite o senso comum.

Pode o Governo fazer uma birra, comportar-se como se estivesse mesmo em causa uma vaca sagrada e dizer que, sem este orçamento, se demite? Na verdade, nos tempos de Trump e de Boris Johnson, já poucas aberrações deveriam surpreender-nos. Mas, ainda assim, é altamente improvável uma birra de António Costa, e uma demissão aventureira, para antecipar eleições e tentar obter uma incerta maioria absoluta. Costa ganhou as eleições há poucos meses, dispõe de uma “legitimidade” política refrescada, alargou a sua margem de manobra e dificilmente se arriscaria a esse salto mortal em princípio de legislatura. A chantagem é mesmo chantagem.

Dito isto, devemos admitir que chumbar um orçamento equivale a pôr em causa linhas mestras da governação correspondente. Estão o BE, o PCP e os Verdes dispostos a pôr tudo em causa neste Governo negocista e lobiista, no seu congelamento de salários e pensões, nas suas cativações orçamentais, na erosão do Serviço Nacional de Saúde, na prepotência contra professores e enfermeiros, na hipocrisia face aos precários? Para um chumbo do orçamento ter algum sentido, seria preciso que estivessem.

Porque, não sendo assim, Costa e Centeno levarão o Orçamento para trás e voltarão depois com uma versão recauchutada mas fundamentalmente idêntica. E o parlamento recomeçará o seu trabalho de Sísifo, com debates circulares e intermináveis, para gáudio de André Ventura, que hoje não é alternativa de poder, mas é a oposição mais vocal, com coisas mais audíveis para dizer num areópago balofo que o seu projecto de Estado tenciona abolir. Para cortar cerce à demagogia populista seria preciso que um chumbo do orçamento fosse o tiro de partida para um regresso à luta de classes: os grandes temas do debate orçamental retomado a partir do zero teriam de ser impostos pela rua, como o são em França no mais forte movimento grevista desde Maio de 68.


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